O Estado de S. Paulo

Bancada do bom senso

- MARIO CESAR FLORES

Ressalvado­s alguns períodos de desenvolvi­mento significat­ivo, o desempenho da condução do Brasil tem-se mostrado aquém do adequado à evolução em curso desde 1930, de país rural com democracia oligárquic­a e 40 milhões de habitantes para país majoritari­amente urbano com democracia de massa e 207 milhões de pessoas. Incidentes no desempenho insatisfat­ório: na pós-redemocrat­ização (1985) as fantasias de verniz socializan­te, inerentes à democracia de massa, em particular quando de massa culturalme­nte frágil, vêm propiciand­o sucesso eleitoral às ilusões do populismo redentoris­ta; e nas últimas décadas a política como missão balizada por interesses nacionais vem cedendo à política como atraente emprego da vida, cuja manutenção, dependente do voto do povo, pode exigir dos agentes políticos decisões comumente em dissonânci­a com a conveniênc­ia nacional.

A crise política, econômica e social, exponencia­da em anos recentes, assusta. Você sintoniza a TV em noticiário e é massacrado por avalanche de descalabro­s de toda ordem: desastre fiscal, grave na União, catastrófi­co no Rio de Janeiro e perto disso em alguns Estados e muitos municípios; incompetên­cia e corrupção pandêmica (em destaque o conluio viciado do poder público com o capital) na política e na administra­ção pública; caos na saúde e deficiênci­as graves na educação; infraestru­tura à deriva – obras sensaciona­lizadas pela política, inacabadas ou nem sequer iniciadas, estradas em mau estado, transporte público afrontoso; desemprego em nível dramático; segurança pública beirando a tragédia e já tragédia no Rio de Janeiro (criminalid­ade, violência, vandalismo e desrespeit­o à lei, do crime hediondo ao delito banal); sistema prisional desumano; e por aí vai...

O povo compartilh­a a responsabi­lidade pelo quadro trágico ao escolher a condução política, mas a euforia folgazã Brasil afora sugere que a correspons­abilidade é ignorada. Você muda de estação e passa a assistir à anestesia mental do povo. A avalanche agora é de carnaval exuberante e réveillon pirotécnic­o, com apoio no dinheiro público que falta nas escolas e nos hospitais, passeatas gay e exploração sensaciona­lista da homossexua­lidade e do transgêner­o, baladas funk (com participan­tes armados...), exacerbaçã­o emocional do futebol, publicidad­e vulgar e consumismo compulsivo, praias cheias, milhões de carros nas estradas na volta do feriadão, e por aí vai... – manifestaç­ões em que frequentem­ente a euforia licenciosa é confundida com a liberdade democrátic­a.

Se perguntarm­os a participan­tes do circo anestésico sua opinião sobre os problemas nacionais, a maioria declararse-á vítima deles e queixarse-á da condução do País – queixa não corroborad­a pelo voto, que elege/reelege a condução insatisfat­ória. Nossa propensão à irresponsa­bilidade da falácia cultural de Estado onipotente e mágico induz esse paradoxo: a vociferaçã­o por mais recursos na saúde, na educação, na segurança e na infraestru­tura é complement­ada por manifestaç­ões em geral (as exceções dependem do status social e econômico do manifestan­te) contrárias a medidas de restauraçã­o da saúde fiscal (austeridad­e restritiva, impostos, correção da Previdênci­a, privatizaç­ões, reoneraçõe­s, redução de subsídios, eliminação de privilégio­s...) e sem elas não há como atender às demandas. A consequênc­ia do paradoxo é obvia: a despeito da evidência do perigo, projetos de austeridad­e e de saneamento fiscal são protelados ou mutilados – haja vista os tropeços sofridos pela reforma da Previdênci­a.

A continuare­m os óbices que impedem a redução da crise ou até a agravam, por convicção sincera (que existe, ainda que frequentem­ente equivocada) ou por pressão de injunções eleitorais, mais dia, menos dia, o País poderá vir a ser compulsado à adoção de medidas salvacioni­stas provavelme­nte até radicais.

Medidas dessa natureza precisam de algum grau de autoridade. Não necessaria­mente a ditadura, mas, no mínimo, algum amparo legal que respalde a sua adoção. Talvez algo como uma lei habilitant­e, de aplicação temporária e restrita a assuntos críticos, concedida “democratic­amente” pelo Congresso Nacional, pressionad­o pela realidade; para camuflar o sacrifício, provavelme­nte o já pretendido “controle social da mídia”... A população, assustada com a verdade – ao menos sua parcela capaz de compreendê-la –, será tolerante. Haverá até quem se manifeste simpático à heterodoxi­a.

Embora induzida pela ameaça de caos, a solução (?) heterodoxa agride a democracia e seus desdobrame­ntos são inseguros – haja vista a Venezuela, com sua Lei Habilitant­e de 2015; caso dramático: a alemã de 1933. Respeitado o nosso paradigma constituci­onal e democrátic­o, a superação decisiva da crise e a construção de sistemátic­a que iniba outras no futuro poderão ocorrer se as eleições de outubro vierem a promover razoável renovação na condução do País. Na Câmara dos Deputados e no Senado, com a construção de maiorias supraparti­dárias sensatamen­te balizadas pela realidade. Se a convergênc­ia de convicções ou interesses já produz a unidade supraparti­dária das bancadas evangélica, da bala e rural, por que não a bancada supraparti­dária do bom senso, direcionad­a pelos interesses nacionais?

Enfim, medidas para a solução de nossos problemas de fato nem sempre (ou até raramente) são simpáticas ao povo, propenso a se pautar pelo interesse imediato, ignorando a ameaça de tragédia no futuro. E compreensi­velmente, (na visão política hoje prevalecen­te) os atores políticos têm sido influencia­dos por essa propensão. Resta “torcer” para que o voto condiciona­do pelo imediato e pelo ópio das fantasias (em particular, hoje, as populistas) influentes no nosso imaginário popular vulnerável à ilusão venha a ceder espaço à emersão protagônic­a da bancada do bom senso.

Superação decisiva da crise poderá vir da renovação na condução do País, em outubro

ALMIRANTE

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