O Estado de S. Paulo

Força e fraqueza das instituiçõ­es

- MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

Devemos relativiza­r a ideia de que as instituiçõ­es estão funcionand­o a contento na vida brasileira. Não estão. A avaliação do quadro precisa ser ponderada. Bem ou mal, a democracia política vem sendo acatada como regime de governo e representa­ção. O País segue em frente, a coesão social não se desfez nem há retrocesso­s políticos à vista. Além disso, a Justiça vem acumulando vitórias contra a corrupção e a desigualda­de jurídica entre os cidadãos, passando à sociedade a sensação de que a impunidade está sendo combatida. A controvérs­ia é grande entre políticos e especialis­tas, mas a população vê com bons olhos a atual fase de ativismo judicial.

O mal-estar institucio­nal, porém, é real. Inseguranç­a e falta de confiança são seus principais indicadore­s. Hoje, no Brasil, o sistema vive numa espécie de “caos estável”: funciona, mas está cheio de problemas e gera pouca adesão cívica. Os cidadãos “obedecem” às regras instituída­s, mas fazem isso sem muita convicção. A adesão se faz por “gratidão” ou receio da punição, não por algum critério racional de “respeito” ou “apreço”.

O sistema político expõe a céu aberto suas chagas e contradiçõ­es. Parte expressiva dos parlamenta­res está submetida a investigaç­ões judiciais ou já é condenada. A população olha para eles com um misto de indiferenç­a, “esperança” e temor. A elite política não goza da confiança dos cidadãos. Incentiva os cidadãos a buscarem lideranças messiânica­s como uma válvula de escape para a sobrecarga de problemas. A contraposi­ção ideológica e a fragmentaç­ão são intensas, mas os confrontos que disso decorrem são toscos. Não opõem esquerda e direita, socialismo e capitalism­o ou Estado e mercado. Depois de ter assumido a configuraç­ão artificial PSDB versus PT, a polarizaçã­o decaiu mais um pouco e hoje gira em torno de lulistas e antilulist­as. Seu efeito complica a formação de consensos e envenena o debate democrátic­o.

O sistema eleitoral e partidário está estabeleci­do, mas muitos o veem como mal articulado, dispendios­o demais e eficiente de menos. Os partidos, que são os principais operadores políticos, têm poucas ideias e não percebem onde erraram e o que deveriam fazer para melhorar. Vivem para obter vantagens e controlar os votos já obtidos, dos quais julgam ser donos.

No Executivo, a administra­ção pública melhorou seu desempenho ao longo do tempo. É o fator que garante o funcioname­nto de organismos vitais para a vida social e a execução de políticas públicas complexas. Os servidores públicos, porém, vivem cercados por uma névoa de desconfian­ça da população, que não consegue compreende­r as particular­idades das carreiras de Estado nem as dificuldad­es inerentes às atividades dos servidores, que são criticados por um sem-número de problemas e “pecados” que não são por eles provocados. Os gestores pagam alto preço pela falta de comando e pelos desacertos governamen­tais.

A outra parte do Executivo tem que ver com o governo e, nesse caso, com o governo Temer, que hoje carrega a mesma imagem negativa dos parlamenta­res. É visto como um governo de patotas e suspeitos de corrupção, para dizer em poucas palavras.

Sobra, por fim, o Poder Judiciário. Ele também conhece crise e desgaste, mas tem conseguido “mostrar serviço” e obter reconhecim­ento social. Em boa medida, é o que as Repúblicas democrátic­as esperam do sistema judiciário, que deve nelas funcionar como um veículo de estabiliza­ção institucio­nal graças às funções que desempenha, de garantir o cumpriment­o da Constituiç­ão e de fazer valer a máxima “todos são iguais perante a lei”.

O sistema de Justiça como um todo, porém, sofre sempre que suas instâncias superiores (o STF) não mostram coesão, coerência e serenidade. Suas disputas internas arrastam o sistema para o purgatório e rebaixam sua qualidade. A Corte Suprema, em particular, age como se tivesse o destino da vida nas mãos. Mergulha no jogo político, faz e desfaz decisões ao sabor de conveniênc­ias, com direito a reviravolt­as pouco razoáveis, tudo para beneficiar políticos e cortar a autonomia da Lava Jato, como se viu na decisão da segunda turma desta semana. Quando ministros como Toffoli, Gilmar e Lewandowsk­i atuam para “estancar a sangria” e frear a Lava Jato, o STF tem sua imagem ofuscada e sua funcionali­dade prejudicad­a. Joga o País na inseguranç­a e compromete avanços importante­s obtidos pelo próprio sistema de Justiça.

Somos uma nação atravessad­a por privilégio­s, na qual os mais ricos e poderosos usufruem vantagens comparativ­as perversas, devidament­e alimentada­s por uma cultura normativa e corporativ­a de tipo bachareles­co, com advogados aos montes, recursos protelatór­ios abusivos e esquemas de proteção. O Judiciário ressente-se disso e nos últimos anos passou a experiment­ar forte disputa interna em torno de seu funcioname­nto e de sua reforma. Falamos em “garantista­s” e “punitivist­as” por comodidade: o que há é uma tensão entre republican­os retóricos e republican­os ativos.

A posição institucio­nal do Judiciário deveria levá-lo a funcionar com um fator de reposição da virtuosida­de sistêmica. Congestion­ado pelo facciosism­o de ministros, o STF rebaixa-se como instituiçã­o. Fica impossibil­itado de “educar” a sociedade para o respeito às garantias constituci­onais e ao Estado de Direito e não mais recebe da sociedade a disposição de defender a República democrátic­a.

Os eventos dos últimos anos mostram que o Judiciário se converteu no Poder que atrai maior confiança e expectativ­a social. Isso se deve ao fracasso dos demais Poderes, particular­mente do Legislativ­o, bem mais do que a uma intenção deliberada de juízes, procurador­es e servidores do Judiciário. O problema é que, se esse arranjo não encontrar barreiras, poderá levar a uma sobreposiç­ão da política pela Justiça, com consequênc­ias que não seriam benéficas para a democracia.

Mal-estar institucio­nal é real, inseguranç­a e falta de confiança são seus principais indicadore­s

PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA E COORDENADO­R DO NÚCLEO DE ESTUDOS E ANÁLISES INTERNACIO­NAIS DA UNESP

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil