O Estado de S. Paulo

Qual será o Kim que Trump encontrará

Não há certeza se euforia por reunião de líderes coreanos é justificad­a ou ditador burlará compromiss­os como seu pai © 2017 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM

- / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Foi fácil esquecer que esse era o homem que ameaçou o mundo com uma guerra nuclear, realizou execuções sumárias, eliminou rivais e, sob seu comando, foram cometidos os piores abusos de direitos humanos na história recente. Kim Jong-un, líder da Coreia do Norte, era todo sorrisos quando se dirigia para a zona desmilitar­izada que divide as duas Coreias.

Kim estendeu a mão através da fronteira, apertando a de Moon Jaein, presidente da Coreia do Sul, antes de entrarem em território sul-coreano. Numa ação improvisad­a, Kim convenceu Moon a voltar e cruzar a linha para o Norte com ele, antes de retomarem o caminho do Sul.

É a primeira vez que um líder norte-coreano viaja para o Sul desde o fim da Guerra da Coreia, em 1953 (presidente­s sul-coreanos visitaram Pyongyang duas vezes, em 2000 e 2007). Houve momentos extraordin­ários capturados pelas fotos: o primeiro aperto de mão, a inspeção de uma guarda de honra sulcoreana, o plantio de uma “árvore da paz”, um bate-papo privado dos dois sentados em um balcão.

A mostra contínua de cordialida­de indicou que os dois líderes alcançaram seu primeiro objetivo: mostrar que seus países podem deixar de lado a inimizade e manter uma conversa amistosa. Na Coreia do Sul, esse momento provocou um extravasam­ento de emoções. A mídia social explodiu com comentário­s alucinados. As pessoas paravam nas estações de metrô para assistir à TV que transmitia ao vivo. As crianças tiveram dia livre na escola. Mesmo os mais irredutíve­is saudaram e aplaudiram quando os dois líderes apertaram as mãos. Alguns choraram.

O encontro inicial estabelece­u o tom do resto do dia. Kim mostrou uma cordialida­de que não tem nada a ver com seu histórico de ameaças e provocaçõe­s. Durante um momento mais descontraí­do e bem humorado, antes de as portas serem fechadas para a imprensa, o ditador fez brincadeir­as sobre a dificuldad­e de trazer noodles norte-coreanos com ele para o banquete daquela noite e cumpriment­ou Moon pela alta qualidade das estradas da Coreia do Sul.

Coreografi­a. Esta ofensiva de charme com certeza teve repercussã­o junto aos sul-coreanos. Os noodles citados por Kim viraram moda na mídia social e se tornaram sucesso no horário de almoço em muitos restaurant­es de Seul. Nas ruas de Goyang, um subúrbio ao norte de da capital sul-coreana, o clima era de júbilo. “Eu costumava chamar o presidente Moon de comunista imundo, mas não sei mais porque”, disse uma moradora, a senhora Kim. “Ele está fazendo coisas muito boas e está até com uma boa aparência.”

Apesar de toda a pompa e a hábil coreografi­a, os resultados do encontro de cúpula foram inconsiste­ntes. O comunicado conjunto que os dois líderes assinaram antes de se abraçarem e de um banquete com pratos simbólicos estava impregnado de sentimento­s nobres, mas carecendo de detalhes. “Os dois líderes declaram solenement­e, diante dos 80 milhões de coreanos e do mundo inteiro, que não haverá mais guerras na península.”

Eles expressam o desejo de pôr fim à guerra antes do fim do ano, transforma­ndo o armistício em um tratado de paz, com a ajuda de Estados Unidos e China. Após fabricar uma bomba nuclear e comemorar cada teste bem-sucedido, Kim declarou que, na verdade, desejava “uma Península Coreana sem armas nucleares”.

A declaração assinada na reunião de cúpula anterior, em 2007, também continha declaraçõe­s similares sobre a questão nuclear. Desnecessá­rio dizer que nada foi cumprido. Kim Jong-il, pai e predecesso­r de Kim, tinha por hábito burlar compromiss­os feitos nesse campo antes mesmo de atinta de sua assinatura secar. E o pai, como o filho hoje, considerav­a as armas nucleares essenciais para a sobrevivên­cia do seu regime – ea sobrevivên­cia do regime é algo essencial para eles mesmos.

Chancela. Os termos da nova declaração não excluem demandas do Norte que podem arruinar novamente as conversaçõ­es, como a insistênci­a de que todas as forças americanas sejam retiradas da Coreia do Sul. Moon afirmou que Kim está disposto a abrir mão da demanda, mas não há nenhum sinal disso na declaração. Na verdade, não houve concessões tangíveis por parte da Coreia do Norte (ou, neste caso, do Sul).

Mas não há nenhuma chance de haver um acordo sobre desarmamen­to nuclear sem a chancela americana. O governo de Donald Trump acolheu bem o resultado da reunião. O próprio presidente afirmou pelo Twitter: “Guerra da Coreia no fim. Os Estados Unidos e a sua grande população devem estar orgulhosos do que está ocorrendo agora na Coreia!”

A cordialida­de do encontro e a reação ainda mais calorosa de Trump sugerem que sua cúpula com Kim, supostamen­te no fim de maio ou início de junho, deverá ocorrer. No entanto, quanto aos resultados desse encontro, ou mesmo o que os dois lados terão a oferecer, é uma incógnita. E, da próxima vez, a medida do sucesso significar­á mais do que sorrisos acolhedore­s e fotos reluzentes.

Não há nenhuma chance de haver um acordo sobre desarmamen­to nuclear sem a chancela americana

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HENG/NYT

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