O Estado de S. Paulo

IPOs budistas

Monges lutam contra o lucro com lugares sagrados na China, mas negócios e budismo têm histórico de parcerias no País

- TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Debaixo de uma brilhante estátua de 33 metros de bronze de Guanyin, o bodisatva (ser iluminado) budista da misericórd­ia, um jovem monge no Monte Putuo confere o dinheiro doado por fiéis visitantes: “Diariament­e, são cerca de dezenas de milhares e centenas de milhares de iuanes”, diz ele (100 mil iuanes valem pouco menos de US$ 16 mil). Mais de 8 milhões de viagens são feitas anualmente para a pequena ilha na cidade de Zhoushan, a cerca de quatro horas de carro de Xangai (para comparação, 11 milhões visitaram a Disneylând­ia de Xangai em seu primeiro ano, depois de inaugurada em 2016). Quando se trata de captação de recursos para o templo, o monge é resoluto. “A forma tradiciona­l é o melhor caminho”, diz ele.

A Putuoshan Tourism Developmen­t Company tem outras ideias. A empresa, cujo maior acionista é controlado pelo governo de Zhoushan e por algumas empresas estatais de gestão de ativos, administra instalaçõe­s turísticas no local, tais como balsas, teleférico­s e lojas de incenso. Desde 2012, ela medita sobre a realização de uma oferta pública inicial (IPO) desses serviços na bolsa de valores de Xangai; no ano passado, disse que esperava levantar 615 milhões de iuanes.

Os monges estão agitados. O que trabalha com a caixa de doações de Guanyin teme que esse rentável negócio não disfarçado transforma­ria seu santuário em “outro Shaolin”. Esse templo, na província de Henan, é administra­do por um abade conhecido como “o monge CEO”. Ele arrendou a marca de kung fu Shaolin para desenvolve­dores de jogos de computador e outros templos, e quer construir um complexo de hotel e templo de US$ 297 milhões na Austrália, com um campo de golfe e uma academia de artes marciais.

Em abril, os budistas conquistar­am uma vitória contra a Putuoshan Tourism, quando a entidade que regulament­a o mercado acionário da China pediu à empresa que retirasse seu pedido de IPO. Novas regras proíbem o lucro com lugares de culto budistas e taoístas, inclusive com registros em bolsa. As empresas de turismo argumentam que suas ofertas não incluem locais sagrados.

No entanto, os negócios e o budismo têm estado frequentem­ente em harmonia, diz Kin Cheung, que pesquisa fé e economia asiáticas no Moravian College, na Pensilvâni­a. As primeiras lojas de penhores da China eram dirigidas por mosteiros budistas, que também arrendavam terras para os agricultor­es. Após o fim da Revolução Cultural, monges cujas terras foram expropriad­as cooperaram com autoridade­s locais e com empresas interessad­as em atrair visitantes, pavimentan­do rodovias para seus templos e abrindo lojas que anunciavam tatuagens espirituai­s. Os governos locais começaram a cobrar taxas de entrada para os picos sagrados do país: 160 iuanes para o Monte Putuo. Para Cheung, “as IPOs são o próximo passo lógico para o envolvimen­to dos budistas com o capitalism­o na China”.

É um passo já dado por alguns. O primeiro a ter suas ações lançadas, entre as quatro colinas sagradas da China – conhecidas pelos budistas como “as terras puras” – foi o Monte Emei na província de Sichuan, em 1997, quando a empresa de turismo local abriu o capital na bolsa de valores de Shenzhen sob o providenci­al número 000888. Desde então, ela abriu um grupo de hotéis sofisticad­os na montanha, e sua receita cresceu doze vezes, para 1 bilhão de iuanes no ano passado. O Monte Jiuhua, na província de Anhui, foi registrado em 2015 na bolsa de valores de Xangai (depois de ter sido rejeitado duas vezes, em 2004 e 2009). O Monte Wutai, na província de Shanxi, já medita sobre os planos de um IPO desde 2010, mas foi divulgado nesta semana que os mesmos foram arquivados em dezembro.

Liu Lewen, analista que acompanha ações de turismo religioso na Shenwan Hongyuan Securities, uma corretora chinesa, diz que o número de ações em circulação tem mais a ver sobre a geração de publicidad­e do que dinheiro, na esperança de usar uma marca bem conhecida para seduzir uma fatia maior dos viajantes que chegam à China para regiões em geral remotas e muito pobres. Em 2016, o turismo gerou perto de 4 trilhões de iuanes, acima dos cerca de 620 bilhões de iuanes na década anterior. A Putuoshan Tourism diz que os fundos de um IPO permitiria­m a construção de estacionam­entos e um resort de águas termais.

Convicção. Mas as empresas de turismo estão enfrentand­o dificuldad­es em mudanças nas doutrinas oficiais. Ian Johnson, que escreveu um livro recente sobre o renascimen­to espiritual da China, diz que as empresas estatais que construíra­m monopólios lucrativos a partir de santuários poderiam encontrar cada vez mais partes de seus negócios intocáveis. O governo central de Xi Jinping quer promover as religiões que considera nativas, incluindo o budismo e o taoísmo, e conter aquelas vistas como estrangeir­as e gananciosa­s. Os monges também se preocupam com o fato de que os anúncios e o turismo de massa afastarão seus maiores e mais piedosos doadores. Nesse sentido, uma convicção compartilh­ada./

As primeiras lojas de penhores da China eram dirigidas por mosteiros budistas, que também arrendavam terras

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AP Monge x mercado. Budistas conseguira­m barrar IPO de empresa que administra Monte Putuo, na China

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