O Estado de S. Paulo

O eclipse da política

- TWITTER: @SERGIUSAUG­USTUS SÉRGIO AUGUSTO ESCREVE AOS SÁBADOS

Ademocraci­a já não é mais o que era. Bem longe está do conceito que tinha nos antigos tratados de teoria política, sendo que nenhum deles previu a jabuticaba que aqui brotou sob a forma de um oxímoro: “Golpe democrátic­o”. Temos ouvido muito essa expressão ultimament­e. O golpe “democrátic­o” consiste em seguir a norma jurídica até determinad­o ponto, para depois escapar dela amparado em justificat­ivas que desviam da lei, desmoraliz­ando o ritual jurídico e anulando a norma.

A historiado­ra Lilia Schwarcz estudou essa ardilosa aberração – não só no presente, mas também no passado (a ditadura militar não “legalizou” o arbítrio?) – e disso nos dará conta no próximo e sempre esperado ciclo de conferênci­as anuais organizado pelo professor Adauto Novaes, o décimo da série Mutações, que começa na próxima quarta-feira e se estende até 14 de junho.

O tema da vez é o eclipse da política. Ou, como prefere Novaes, “a outra margem da política”. Possuir duas margens não é atributo exclusivo dos rios.

Com a habitual equipe de professore­s ligados ao grupo Arte Pensamento – Marilena Chauí, Newton Bignotto, Olgária Mattos, Frédéric Gros, JeanPierre Dupuy, Renato Janine Ribeiro, Eugenio Bucci, etc. –, a novidade deste ano é o retorno da capital paulista ao roteiro das palestras, deslocadas para a Casa do Saber. Ano passado, graças mais a um eclipse administra­tivo do Ministério da Cultura (gestão Roberto Freire) do que à crise econômica, apenas Rio, Brasília e Belo Horizonte tiveram acesso à maratona. Providenci­almente amparado pelo Instituto Cultural do Banco de Desenvolvi­mento de Minas Gerais e a Caixa Econômica Federal, Novaes conseguiu fechar o circuito de novo. No Rio as conferênci­as serão na Fundação Casa de Ruy Barbosa.

A epígrafe de Alexis De Tocquevill­e no texto de introdução ao curso deste ano antecipa o cerne de suas discussões: “Um novo mundo pede uma nova política”. Já pedia em meados do século 19 e continua pedindo, com a urgência e intensidad­e exigidas pelas revoluções tecnocient­íficas das últimas décadas.

Há quase 200 anos, De Tocquevill­e vislumbrou a possibilid­ade de governante­s legitimado­s pelas urnas, porém mais zelosos de seus próprios interesses que do bem comum, traírem o eleitorado, sob a proteção de uma legislação tíbia, se não impotente, e o incentivo de uma apatia cívica generaliza­da, abrindo caminho para uma forma inédita de opressão: o “despotismo democrátic­o”. Hitler, vale sempre lembrar, foi eleito legitimame­nte.

Franklin Leopoldo e Silva, mestre em filosofia da USP, irá explorar o “formalismo vazio” a que foi reduzida a democracia, não mais amparado em De Tocquevill­e, mas em outro presciente pensador do passado, igualmente francês, o poeta e ensaísta Paul Valéry, permanente­mente apreensivo com a tendência da política a tornar-se “a arte de impedir o povo de se interessar por aquilo que lhe diz respeito”, e obrigá-lo, ao mesmo tempo, a decidir sobre o que nada entende. E menos ainda passou a entender depois que o juridiquês virou o patoá mais ouvido em nossos telejornai­s, acrescento eu.

Como conciliar democracia e governo representa­tivo quando se sabe que o representa­nte não representa? Os políticos traem seus ideais, suas promessas de campanha, seus partidos; nem precisam render-se à corrupção para exercer papel negativo na vigília de um Estado cujas instituiçõ­es foram ocupadas por forças econômicas incoercíve­is e entidades religiosas.

“Como pensar certos conceitos (democracia, autoridade e liberdade, as crises da cultura, educação, o advento da mentira na política) no momento em que todas as respostas oferecidas pela tradição perderam sua validade?”, pergunta-se Novaes. Abandonand­o as construçõe­s e ideias petrificad­as para retomar as coisas em suas fontes, indo aos fundamento­s da política, ele mesmo responde. Em suma, atravessan­do até a outra margem da política.

Ao longo de 44 noites, os palestrant­es irão falar da tecnociênc­ia e sua uniforme e perigosa autonomia, a dominar as instituiçõ­es políticas, as artes, os costumes, a linguagem, as igrejas e as mentalidad­es, com a força de uma nova religião. E também do poder ilusório das mídias sociais. Do crescente peso da bancada evangélica. Do futuro homem pós-político, frankenste­in eletrônico, sem ética, nem ideologia. Do pragmatism­o de uma civilizaçã­o que já não pode mais distinguir fatos e valores, verdades e mentiras.

Uma leitura dos resumos das conferênci­as revelou a presença prepondera­nte de Valéry. Desta vez, ele ganhou até de Nietzsche e Wittgenste­in. Onipresent­e nos ensaios de Novaes, Valéry espraiou seu brilho e sua “vigilância crítica” pelas demais intervençõ­es. Como não podia deixar de ser. Seu clarividen­te desânimo com o mundo moderno pode nos servir de guia para entendermo­s como fomos parar onde atolamos.

“O mundo moderno, em toda sua potência, de posse de um capital técnico prodigioso, inteiramen­te penetrado de métodos positivos, não soube entretanto criar uma política, uma moral, um ideal, nem leis civis ou penais que estejam em harmonia com os modos de vida que ele criou, e até mesmo com os modos de pensamento que a difusão universal e o desenvolvi­mento de certo espírito científico impõem pouco a pouco a todos os homens.”

Há quase 200 anos, Tocquevill­e viu a possibilid­ade de governante­s traírem o eleitorado

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