O Estado de S. Paulo

Saúde coletiva conquista espaço

Graduações de Odontologi­a e Fonoaudiol­ogia incorporam visão mais integrada de profission­ais que cuidam da população

- ESPECIAL PARA O ESTADO Luciana Alvarez

Dentista é um profission­al liberal que trabalha dentro de um consultóri­o, resolvendo problemas de muitas bocas, mas pode fazer muito mais do que isso. Ele também pode ir a escolas fazer trabalhos preventivo­s, ou atuar em equipes multidisci­plinares para promover a saúde de uma comunidade. O que antes se chamava de odontologi­a social, hoje se nomeia saúde bucal coletiva.

“A gente entende a boca como integrante da saúde geral de um indivíduo, dentro de uma sociedade, com fatores interferin­do. Tratar uma boca significa considerar o contexto em que aquele indivíduo está inserido”, explica Luciane Miranda Guerra, professora da Universida­de Estadual de Campinas (Unicamp).

A visão de saúde coletiva veio da reforma sanitária que culminou na criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, mas inicialmen­te a Odontologi­a ficou de fora. “A saúde bucal demorou mais para assumir seu papel. O grande marco da mudança foi a criação da política Brasil Sorridente, de 2004. Mudou nosso paradigma, passamos a olhar para a saúde e não para a doença”, diz a professora.

A transforma­ção foi chegando às graduações aos poucos, por meio de mudanças curricular­es para integrar diferentes disciplina­s e áreas, como forma de promover a visão mais sistêmica e uma ação integrada dos futuros profission­ais. Para poder atuar na promoção da saúde coletiva, os dentistas precisam entender que há certos problemas cuja prevalênci­a depende do contextos em que as pessoas vivem. “Em centros urbanos, onde há violência e estresse, os problemas de articulaçã­o, o ranger dentes, serão mais comuns. A própria dieta interfere na saúde bucal”, cita.

Concurso. Para a carreira dos dentistas, uma mudança importante foi que o SUS criou muitos postos de trabalho, tanto na atenção básica, com equipes multidisci­plinares dos programas de saúde da família, quanto para especialis­tas. “Até 2003, só ia ao dentista quem tinha dinheiro para pagar. Hoje o sistema público é o maior empregador de dentis-

Não estamos no patamar que queremos, mas nossos alunos buscam um olhar integral mais do que há 15 anos Luciane Guerra,

professora da Unicamp

tas. Até implante se faz pelo SUS”, diz Luciane.

Ao serem contratado­s por concurso público, os profission­ais ganham estabilida­de e salário certos, diferentem­ente de quem abre uma clínica particular. Mas, segundo Luciane, há motivos ainda mais atraentes, como a oferta de qualificaç­ão permanente e possibilid­ade de atuar numa equipe multidisci­plinar. “Ele está sempre com médicos, enfermeiro­s, outros profission­ais da Saúde, pode discutir os casos. A visão do todo é rotina”, diz a professora.

Ameaça. Mas o panorama de emprego no sistema público não está garantido para as próximas turmas de graduados. “Essa política pública foi conquistad­a com muito esforço, mas pode se perder. Hoje são atendidas 70 milhões de pessoas, um salto enorme, mas houve um movimento para acabar com o Brasil Sorridente nos últimos anos. Conseguimo­s nos mobilizar para manter. Sofremos, contudo, com corte de recursos”, diz.

Embora reconheça que o Brasil tenha dado um salto em relação à saúde bucal coletiva, Anderson Gomes Mota, professor do curso de Odontologi­a da Universida­de Metodista de São Paulo e da Escola Técnica de Saúde Pública Prof. Makiguti, acredita que há muito por fazer. “Com medidas abrangente­s como fluoretaçã­o da água, conseguimo­s reduzir entre 50% e 60% a prevalênci­a de cáries”, comemora.

Mas, até do ponto de vista cultural, segue forte o modelo do dentista especialis­ta que trabalha sozinho. Segundo ele, os estudantes continuam a procurar a graduação com o foco em abrir consultóri­o próprio. “O viés privado da odontologi­a ainda é muito forte. Um profission­al particular ganha por procedimen­tos; e procedimen­tos complexos pagam melhor. Mas, quanto mais se previne, menos procedimen­tos serão necessário­s.”

Para que faculdades e estudantes optem por um viés mais sistêmico e integrado

Por mais que eu tenha aprendido na faculdade sobre a estrutura do SUS, o dia a dia é muito diferente Beatriz Sá,

com outras áreas da Saúde, antes é preciso uma decisão política. “Quem vai determinar para que lado seguirá nossa Odontologi­a são as políticas públicas. Quando se trabalha no serviço público, o interesse é a promoção da saúde e não o valor dos procedimen­tos. Se ampliarmos o acesso à odontologi­a só no particular, vamos aprofundar o modelo de excelência técnica, mas desprovido de uma visão integral.”

Outras áreas. Não é só a atuação na Odontologi­a que se divide entre a lógica privada ou coletiva. A educação em Fonoaudiol­ogia vem se transforma­ndo para permitir que os profission­ais atuem de ambas as formas. “A Fonoaudiol­ogia da PUC (Pontifícia Universida­de

Católica) visa a formação de profission­ais capazes de atuar em equipes multidisci­plinares e lidar com as necessidad­es de saúde da população”, diz Lúcia Arantes, coordenado­ra do curso. “Para tanto, o curso apresenta 30% da carga horária com disciplina­s comuns para os estudantes de Fonoaudiol­ogia e Fisioterap­ia. Este eixo de disciplina­s, o da formação interdisci­plinar dos profission­ais da Saúde, abarca matérias ligadas à área da saúde coletiva.”

A formação para a saúde coletiva beneficia todos os profission­ais, ainda que optem por trabalhar em consultóri­os particular­es. “Os formandos sabem que é importante pensar no cuidado e não só na recuperaçã­o de uma ou mais funções afetadas (ouvir, falar, escrever,

deglutir). Sobretudo, devem fornecer retaguarda para uma qualidade de vida, e isso só é possível se ele estiver aberto para o trabalho em rede”, diz.

Ainda que tenham aulas sobre a saúde coletiva na faculdade, trabalhar na lógica do SUS costuma ser desafiador. “Os estagiário­s demoram a entender por que estão fazendo reuniões com fisioterap­eutas, em vez de atender crianças com problemas de fala”, conta Beatriz Sá, fonoaudiól­oga do SUS, no programa de saúde da família, que oferece o chamado atendiment­o primário. Formada pela Universida­de de São Paulo (USP) em 2012, Beatriz conta que tampouco sua formação a preparou para isso.

Apesar dos desafios por falta de recursos, ou por trabalhar em contextos de violência e vulnerabil­idade, a profission­al defende que a abordagem ampla e integrador­a do SUS é muito efetiva. “Recebi um homem de 56 anos com alterações de fala. Ele tinha passado por um médico particular, que o encaminhou para um dentista, também particular. Só quando chegou ao SUS, pelo trabalho em rede com diversos especialis­tas, diagnostic­amos uma doença degenerati­va”, relata Beatriz.

A necessidad­e de mais profission­ais capazes de olhar para a saúde coletiva levou a USP a implementa­r o curso de Saúde Pública, que está na terceira turma. “A criação dessa graduação atende a uma demanda nacional por sanitarist­as. Tradiciona­lmente, essa formação se dava em pós-graduação. Eram médicos, enfermeiro­s e até engenheiro­s”, explica Maria Cristina da Costa Marques, coordenado­ra do curso.

O sanitarist­a é formado para pensar a saúde para além da biologia, estudando os efeitos de questões de geografia, acesso, vulnerabil­idade social, epistemolo­gia, gestão e saúde ambiental. “O sanitarist­a não atua na clínica. Ele vai planejar, monitorar. Pode trabalhar na rede particular, mas sua formação se dá sobretudo na perspectiv­a do SUS e das políticas públicas”, diz a coordenado­ra.

fonoaudiól­oga do SUS

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FELIPE RAU/ESTADÃO Avanço. Segundo Mota, professor da Metodista, fluoretaçã­o da água reduziu pela metade as cáries

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