O Estado de S. Paulo

AS DÚVIDAS DE GIL

Cantor será entrevista­dor em série do Canal Brasil, que estreia em setembro.

- Julio Maria

Mais de 50 anos respondend­o a jornalista­s podem ter ensinado Gilberto Gil algo que repórteres nem sempre dominam. A melhor resposta nem sempre vem depois de uma interrogaç­ão, mas de uma afirmação. Pergunta boa é pergunta curta. Não existe pergunta proibida, existe pergunta mal feita.

Gil então, pela primeira vez, vira entrevista­dor. A convite do Canal Brasil, ele grava onze episódios da série de entrevista­s

Amigos, Sons e Palavras, com estreia prevista para 11 de setembro. Serão onze episódios com personalid­ades como Alex Atala, Juca Kfouri, Fernanda Torres, Maria Ribeiro e Renata Lo Prete. Antes de cada conversa, ele toca uma música. Algumas delas estarão no novo disco que o baiano vai lançar em julho.

O Estado acompanhou, na terça-feira (24), a gravação da entrevista de Gil com o médico cardiologi­sta Roberto Kalil Filho (leia mais abaixo). Logo depois, Gil voltou ao papel no qual diz sentir-se bem mais à vontade: sentou-se à frente de um jornalista para responder.

• Fazer perguntas pode ser uma grande chance que a vida lhe dá aos 75 anos. Você é um homem de muitas dúvidas?

Eu só tenho dúvidas, e, quanto mais a gente vive a vida, mais dúvidas surgem. Ainda que tenha dirimido várias, em seus lugares aparecem outras. Toda solução é um problema. Se passarmos a vida solucionan­do, imagina quantas novas interrogaç­ões vamos acumular? Quantos problemas resolvidos estarão virando novos problemas? A dúvida é eterna.

• Você acabou de entrevista­r o

médico que esteve ao seu lado em um momento de saúde delicado. Essa experiênci­a de estar na iminência da morte, de dialogar ao seu ouvido, fez mudar algo na sua falta de crença em Deus?

Eu ainda acredito que Deus é uma criação dos homens. O homem inventou Deus para que ele próprio tivesse a possibilid­ade de ter sido criado por algo, uma tentativa de decifração sobre sua existência. Deus é um reflexo. O homem criando seu inventor, seu criador. Deus é um criador criado pelo homem.

Você não rezou nenhuma vez, mesmo pisando no limite da vida?

Mas eu também rezo! E admito a tentativa de interlocuç­ão com instâncias distantes da minha própria compreensã­o. Eu admito pedir. Tem uma música em que falo algo esclareced­or sobre isso (Andar com Fé): “Mesmo a quem não tem fé, a fé costuma acompanhar”. Somos todos condenados à liberdade, e essa liberdade é a fé. Não é a crença, não é acreditar em algo, mas é perceber que algo sempre se manifesta, obrigando você a esse deslocamen­to da liberdade. Mesmo que você não queira, está produzindo esse instante seguinte na sua vida.

• Um outro assunto: houve toda uma linha sucessória no Ministério da Cultura desde sua passagem por lá, e percebe-se cada vez mais um distanciam­ento das propostas de se entender cultura de forma mais ampla, como os investimen­tos em economia criativa. O que sente quando percebe o que aconteceu nos últimos anos do Ministério?

Aquela excelência, aquela condição

“João Gilberto está trancado para se preservar e preservar o mundo ao redor. Ele não quer atrapalhar o mundo”

Gilberto Gil

especial de entendimen­to da cultura e da gestão do papel do Estado é uma coisa que teve seu ciclo. Poderia ter sido prolongado se um perfil parecido com o meu tivesse vindo, se um governo como o que eu servia tivesse vindo, mas essas coisas são cíclicas, e aquele ciclo acabou.

• Você teve contato com Lula depois da prisão?

Acho que ninguém ainda teve. Lula é um político que foi preso por força de um inquérito, que se tornou um processo e que o levou à condenação. E, ao mesmo tempo, é um preso político por uma série de aspectos propriamen­te políticos envolvidos nas formas com que os atos foram feitos para encaminhar essa condenação. Lula é um político preso e um preso político.

• Você foi um preso político.

Sim, por isso estou falando com conhecimen­to. Lula está lá por professar as ideias que professa, por ser quem é, por contrariar uma série de propósitos e expectativ­as assentadas na vida política do País.

• João Gilberto. O homem mais importante da música brasileira vive um drama em meio a uma família rompida, trancado em seu próprio apartament­o. Há algo a ser fazer?

Eu sinto uma consternaç­ão enorme, porque sei da verdade que é essa dimensão reclusa do João, o quanto isso faz parte de uma escolha, de um modo de vida. Ele está lá para se preservar e preservar o mundo ao seu redor. João não quer atrapalhar o mundo!

• Acha que ele tem essa consciênci­a?

Sim! Para João, qualquer acréscimo de atrito, de ruído, já pode ser além da dose. João é um homem de quietude, de muita meditação.

• Faria algo por ele?

Não, a não ser ligando, batendo na porta, mandando recado por quem tem acesso...

• Vi você tocando Refavela com a família toda unida no palco e lembrei de João, com filhos e pessoas próximas que nem se falam. Seria tudo isso fruto do que diz Caetano, “o dinheiro que ergue e destrói coisas belas”?

Não vi o dinheiro construind­o nada muito relevante na vida do João. Não se trata de dinheiro aquilo. Ali é vida, é postura, afeto. O que precisa ser preservado é a forma como João se vê e como ele vê o mundo.

Deus é um reflexo. O homem criando seu criador. Deus é um criador criado pelo homem”

Gilberto Gil

 ??  ??
 ?? FOTOS WERTHER SANTANA/ESTADÃO ?? Papéis trocados. Apesar do projeto, Gil diz que ainda se sente melhor como entrevista­do
FOTOS WERTHER SANTANA/ESTADÃO Papéis trocados. Apesar do projeto, Gil diz que ainda se sente melhor como entrevista­do

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil