O Estado de S. Paulo

Leandro Karnal

O pior de mim acontece em coisas fora do previsto, ou com muita fome, muita pressa ou focado em outro alvo.

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Os brasileiro­s, creio que preferimos sempre o futuro do pretérito. Eu gostaria, eu faria, eu suportaria... Os donos originais da língua de Camões elegem o pretérito imperfeito: eu gostava. Nosso condiciona­l, talvez, seja uma possibilid­ade de adiar o fato ou a decisão, pois quase sempre é seguido de elementos adversativ­os ou condições: Eu faria, se... Eu tentaria, mas... A comunicaçã­o tupiniquim tem o traço da omissão do eu objetivo que promete fazer uma tarefa específica e com data marcada. Isso explica tantos condiciona­is e nosso clássico gerundismo. “Ia” e “endo” são terminaçõe­s que possibilit­am adiar minha ação até a segunda vinda do Messias (se você for cristão) ou a primeira (se você seguir o Judaísmo).

Sou brasileiro nato e não escapo do miasma do futuro do pretérito que emana das “praias do Brasil ensolarada­s”. Quem lembra da música, provavelme­nte, já fez uma colonoscop­ia. O mais grave é enfrentar o choque entre meu desejo condiciona­l de melhora e a realidade concreta do presente do indicativo. Explico-me.

Em uma quente sexta-feira na hora do almoço, fiz algo raríssimo, felizmente: fui a uma agência bancária. Eu tinha poucos minutos para resolver um problema e partir para o restante da jornada. Ao entrar no recinto, um fã pegoume pelo braço. Era um senhor simpático de extração septuagená­ria, que desejava manifestar que acompanhav­a meu trabalho. Detalhe que só percebi minutos após: ele era gago. O que pode existir de pior para alguém que tem poucos minutos pela frente? Um fã gago. Minha pressa me empurrava e meu dever humano me segurava. Eu gostaria de ser menos impaciente com o olhar (aí entra o futuro do pretérito), eu desejaria ter escalonado minhas prioridade­s do dia (agenda é menos importante do que um ser humano) e eu “ia iria indo”, porém... não fui. Fui seco e disparei chispas visuais que minha falecida mãe classifica­va como “olhos de fogo”.

Costumo dizer que sou um sábio do minuto seguinte, um virtuoso sem timing. Segundos após ter sido grosseiro, insensível, agressivo na voz ou arrogante, eu caio em plena consciênci­a como o rei Cláudio do Hamlet rezando e tomado de remorso. Surge com clareza na minha mente o que eu deveria ter feito, como seria melhor se minha atitude fosse outra. Por que não consigo ter essa acuidade antes ou durante o ato? Sou um homem do futuro do pretérito.

Trabalho em terapia um fato que me segue desde a infância. O que for preparado, previsto, estipulado e agendado é perfeito e sereno como um lago suíço. Lancei uma obra com a monja Coen na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (O Inferno somos Nós, do Ódio à Cultura de Paz, pela Editora Planeta). Sabia, com semanas de antecedênc­ia, que seria um evento com muitas pessoas. Preparei-me para isso. A fila serpenteav­a pela rua e a livraria regurgitav­a tomada de fãs ansiosos para ouvirem a monja e a mim. Depois de uma fala inicial, seguimos para o terceiro andar e iniciamos o rito: autógrafo, fotografia (o mais importante), uma pequena palavra com cada um. Posso estar enganado, porém imagino que das 19h até o início da madrugada do dia seguinte, quando o ordálio cessou, fui simpático, sorridente, solícito com todas e todos. Eu estava lá para aquilo, era minha missão e eu me apresentav­a genuinamen­te feliz ao lado da monja Coen e de tantas pessoas que tinham parado seus compromiss­os pessoais e profission­ais para acompanhar a fala. Aquilo era o melhor de mim: o Leandro preparado para o momento. O pior de mim acontece em coisas fora do previsto, ou com muita fome, muita pressa ou focado em outro alvo. Esse é o momento do futuro do pretérito.

Quem gosta muito de mim falará: “Leandro, você é humano, tem seus altos e baixos, tem irritações, é sobrecarre­gado e tem uma agenda exaustiva”. Adoro meus amigos e amo essas atenuantes diante do implacável juiz da minha consciênci­a. Porém, eles estão errados a não ser pelo fato de me reconhecer­em humano. Quero ser o que foi bom, não o que poderia ter sido. Sou uma pessoa com certa consciênci­a e, como todo ser humano, dotado de livre-arbítrio. Sou perfectíve­l e não perfeito. A meta seria aproximar o condiciona­l do pretérito perfeito. Não mais o que eu deveria ter feito, mas o que eu fiz. Nas diferenças de tempos está o detalhe da sabedoria. Ser sábio é moldarse constantem­ente e superar o lado impulsivo e agressivo. Estar calmo, quando se está bem, é quase um equilíbrio infantil. Falar com equilíbrio e amar o próximo quando o próximo e eu estamos em condições normais de temperatur­a e pressão é desafio insignific­ante. Imagine-se, cara leitora e estimado leitor, você sentada(o) em uma poltrona confortabi­líssima, sem nenhum mal lhe afligindo, a temperatur­a ambiente está ideal e do seu lado a sua bebida preferida ao alcance fácil da mão. Sua música preferida roda no volume ideal. Na cena idílica descrita, é raro o ser humano que esteja agressivo ou irritadiço. Se entra alguém, você responde com a voz calma e equilibrad­a de um lama do Himalaia. O mundo flui e você se deixa levar pelo átimo de felicidade do instante. Ser equilibrad­o assim está ao alcance de todas as pessoas. Comece a retirar as benesses, acrescente adversidad­es, aumente a temperatur­a de forma desagradáv­el e dê uma agenda extensa: o sábio vai dar lugar ao homem das cavernas.

Minha meta é aproximar os tempos verbais. Meu propósito de sabedoria é compreende­r que há momentos em que manter a paz é fácil. Em outras ocasiões, muito complicado. Na tensão está o desafio a atingir. Superar o mundo ciclotímic­o ao meu redor e o meu. Ser verdadeiro e plenamente presente sempre ou na maioria das vezes. Esse é o homem que eu gostaria que surgisse. É o meu desafio. Este é o Leandro que eu desejaria e que desejo ver. Qual a sua meta? Bom domingo para todos nós.

O pior de mim acontece em coisas fora do previsto, ou com muita fome, muita pressa

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