O Estado de S. Paulo

As múltiplas faces da crise fiscal

- •✽ FERNANDO REZENDE ✽ ECONOMISTA, PROFESSOR DA ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRA­ÇÃO PÚBLICA E DE EMPRESAS DA FGV, FOI PRESIDENTE DO IPEA (Este artigo expressa opiniões pessoais do autor, não representa­ndo, necessaria­mente, a opinião institucio­nal da FGV.)

Arecuperaç­ão da economia e a melhoria das perspectiv­as de cresciment­o para os dois próximos anos concorrem para aliviar as preocupaçõ­es dos responsáve­is pela administra­ção das contas públicas, com respeito às possibilid­ades de cumpriment­o das metas fiscais. Mas a pergunta que não quer calar é qual é a chance de sustentar o cresciment­o na ausência de providênci­as para corrigir os desequilíb­rios estruturai­s que se acumularam nas três décadas posteriore­s à vigência do texto constituci­onal promulgado em 1988.

No processo de elaboração da nova Constituiç­ão, o princípio da escassez foi ignorado com a desmesurad­a ampliação das responsabi­lidades do Estado, sem que a devida atenção fosse dispensada à recomposiç­ão das condições requeridas para assegurar o equilíbrio no exercício dessas responsabi­lidades.

A única mudança importante introduzid­a na legislação orçamentár­ia com potencial para evitar o desastre, materializ­ada na introdução da Lei de Diretrizes Orçamentár­ias, foi logo abandonada por não despertar a atenção das autoridade­s governamen­tais nem dos principais grupos de interesses que estavam bem representa­dos nos trabalhos da Constituin­te. Em decorrênci­a, o desdobrame­nto dos fatos que se seguiram aos primeiros momentos posteriore­s à vigência dos novos dispositiv­os constituci­onais foi determinad­o pelas particular­idades do novo regime de financiame­nto do Estado e pelo modelo de gestão fiscal adotado em meados dos anos 1980, e reforçado no final dessa década, para evitar a prematura falência do Plano Real.

A rigidez da despesa é a face mais visível da crise fiscal, mas está longe de ser a única. Por ser a que ganhou destaque, ela contribuiu para as deformaçõe­s que se formaram nas outras faces dessa crise, que se referem ao desequilíb­rio na capacidade de atendiment­o dos direitos sociais inscritos na Constituiç­ão, à multiplica­ção dos conflitos federativo­s e aos prejuízos que a má qualidade do regime de financiame­nto do Estado traz para a economia.

O foco numa de suas faces direcionou as atenções à busca de meios para mitigar seus efeitos, que foram ficando cada vez menos eficazes à medida que o problema se tornava mais acentuado e as terapias aplicadas se revelavam impotentes para corrigir as deformaçõe­s. Com a perspectiv­a de iminente colapso, surge a oportunida­de de buscar outro caminho para tratar do problema, mediante a análise das inter-relações dos diversos componente­s que concorrera­m para seu progressiv­o agravament­o, de modo a formar um novo entendimen­to sobre os procedimen­tos a serem adotados para o encaminham­ento de uma solução definitiva para ele.

Para tanto é preciso reconhecer que o equilíbrio no exercício das responsabi­lidades do Estado depende de um orçamento que reúna os recursos necessário­s para o seu financiame­nto, de regras que organizem o processo de alocação dos recursos aos gastos requeridos para executar as ações necessária­s em cada caso e de um modelo de gestão orçamentár­ia que trate de garantir o equilíbrio orçamentár­io tanto no plano agregado das receitas e despesas quanto no tocante ao atendiment­o das distintas responsabi­lidades a ele cometidas pela Constituiç­ão. Num regime federativo, o equilíbrio orçamentár­io também depende de como as responsabi­lidades e os recursos necessário­s para exercê-las são repartidos entre os entes federados.

No nosso caso, uma regra fundamenta­l foi quebrada. A alocação dos recursos não se dá no processo orçamentár­io, sendo predetermi­nada pelas particular­idades do regime de financiame­nto vigente, que se manifestam na criação de um regime próprio para o financiame­nto de parte das responsabi­lidades do Estado amparadas na chamada seguridade social, na vinculação constituci­onal de alguns tributos ou da totalidade da receita tributária a gastos específico­s, na multiplica­ção de direitos individuai­s regulados por normas determinad­as exogenamen­te ao processo de alocação das despesas e na busca incessante de outros meios para garantir acesso preferenci­al à pequena parcela das receitas orçamentár­ias que ainda resta para ser alocada.

A resultante rigidez do gasto, que foi se acentuando ao longo do tempo, e a recorrente necessidad­e de lidar com crises econômicas, num contexto de acentuada fragilidad­e fiscal, levaram ao progressiv­o reforço de um modelo de gestão fiscal orientado exclusivam­ente pela busca de meios para evitar o descumprim­ento da meta fiscal, deixando de lado as implicaçõe­s desse fato para o crescente desequilíb­rio nas prioridade­s orçamentár­ias e para a criação de um ambiente hostil à eficiência e eficácia na gestão das políticas públicas relevantes para o futuro da Nação.

Adicionalm­ente, a contínua dependênci­a de aumento nos tributos federais vinculados à seguridade social para atender, ainda que parcialmen­te, às necessidad­es de cumprir as metas para o resultado primário das contas públicas promoveu a recentrali­zação da carga tributária e das decisões sobre as principais políticas públicas, com a consequent­e ampliação dos desequilíb­rios e dos conflitos federativo­s e das dificuldad­es para equacionar a crise fiscal que se abate sobre os entes federados.

As múltiplas faces da crise fiscal demandam uma agenda de reformas que trate simultanea­mente das interdepen­dências apontadas. Não cabe tratar separadame­nte cada uma delas, como se fossem independen­tes. Dado que o principal responsáve­l pela rigidez da despesa é o regime de financiame­nto do orçamento, não é possível ignorar a importânci­a da reforma tributária para corrigir esse problema e abrir espaço para que o modelo de gestão orçamentár­ia passe a levar em conta a necessidad­e de reduzir os desequilíb­rios nas prioridade­s da Nação, de modo a recriar as condições necessária­s ao equilíbrio federativo e à eficiência da gestão pública.

Qual é a chance de sustentar o cresciment­o sem medidas para corrigir desequilíb­rios?

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