O Estado de S. Paulo

Terreno inexplorad­o

- LOURIVAL SANT’ANNA EMAIL: CARTA@LOURIVALSA­NTANNA.COM LOURIVAL SANT’ANNA ESCREVE AOS DOMINGOS

Desde o início da distensão, o ditador norte-coreano, Kim Jong-un, definiu como objetivo a “desnuclear­ização da Península Coreana”. No Ocidente, isso foi traduzido como renúncia unilateral do programa nuclear da Coreia do Norte. Pareceu incompreen­sível, dado o esforço em atingir o status de potência nuclear e o ufanismo com o qual celebrou cada passo nessa direção. Mas não é disso que se trata. A Coreia do Norte exige como contrapart­ida a retirada do arsenal nuclear americano.

No jargão militar, armas nucleares são chamadas de “ativos estratégic­os”, em oposição às armas convencion­ais, que são táticas. Em uma guerra, empregam-se armas convencion­ais. O arsenal nuclear tem função de projetar poder, inibir ações inimigas e reduzir as hipóteses de ameaça. A desnuclear­ização da península é uma decisão não da Coreia do Sul, mas dos EUA. Ao aceitála, os americanos abririam mão da supremacia militar na região que concentra seus adversário­s mais poderosos – China e Rússia – e alguns de seus aliados mais importante­s economicam­ente: Japão, Coreia do Sul e Taiwan.

O Japão, que assim como a Coreia do Sul tem um acordo de defesa mútua com os EUA, perderia o guarda-chuva nuclear americano sem ter nem sequer participad­o da negociação. Tudo isso é improvável, e todos os atores envolvidos sabem disso. Então, quais os objetivos realistas da reunião de cúpula de sexta-feira entre Kim e o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in?

Os dois reconhecem que a hostilidad­e entre as duas Coreias as enfraquece, na região do planeta que sofre as maiores transforma­ções. A China está emergindo da posição de potência regional para disputar poder global com os EUA. O Japão se movimenta para garantir sua capacidade de se defender, independen­temente dos americanos.

A eleição de Donald Trump, que inicialmen­te pôs em dúvida a própria disposição de defender o Japão em uma guerra, para depois reafirmar o compromiss­o com o pacto de defesa mútua, demonstrou a vulnerabil­idade do arranjo. E reforçou a percepção de que o período do pós-guerra, do qual o pacto faz parte, chegou ao fim.

O risco de conflito é alimentado pelo nacionalis­mo do presidente Xi Jinping; pela reivindica­ção chinesa do arquipélag­o japonês de Senkaku; pela projeção da China sobre a região, que já abarca a cooptação de aliados da Índia em seu quintal, como Nepal, Sri Lanka e Maldivas; e pelo investimen­to das imensas reservas chinesas na construção de infraestru­tura de uso híbrido, civil e militar, da África Ocidental ao Leste Asiático.

Entre Japão e China está a Península Coreana. Daí a convergênc­ia de objetivos das duas Coreias. O pensamento convencion­al é o de que uma reunificaç­ão colocaria a península sob domínio da Coreia do Sul, que tem uma economia cem vezes a do Norte e o dobro da população. Mas, entre unificação e hostilidad­e, há um espectro de possibilid­ades. É isso que passa a ser explorado agora em Seul e Pyongyang.

Internamen­te, isso se tornou possível depois que Kim consolidou seu poder, realizou reformas que produziram relativa prosperida­de, mas passou a se preocupar com o cerco das novas sanções. E Moon, defensor da reaproxima­ção, elegeu-se presidente, em maio do ano passado.

Trump disse que podia desistir da cúpula com Kim, prevista para o fim de maio ou início de junho. Na sextafeira, comemorou no Twitter que a guerra na Coreia poderia acabar e agradeceu a Xi por sua “grande ajuda”. Corre em paralelo a guerra comercial entre EUA e China. Os chineses sempre usaram a Coreia do Norte como uma carta na disputa com os EUA. Não mais. Kim e Moon deram um grito de independên­cia. Ao cruzar a zona desmilitar­izada, entraram num terreno inexplorad­o.

Na zona desmilitar­izada, Kim e Moon deram um grito de independên­cia

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