O Estado de S. Paulo

A ilusão pacifista de Jeremy Corbyn

A relutância do líder trabalhist­a do Reino Unido em usar a força ameaça tornar o mundo um lugar mais perigoso

- / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

George Orwell escreveu, um pouco maldosamen­te, em A Caminho de Wigan que a esquerda britânica age como um imã irresistív­el para todos os tipos de excêntrico­s: bebedores de suco de frutas, nudistas, pessoas que usam sandálias, maníacos sexuais, adeptos da “cura natural” charlatões e – uma de suas implicânci­as particular­es – os pacifistas. No geral, o Partido Trabalhist­a fez um trabalho admirável em manter sua ala excêntrica sob controle quando se trata de questões sérias como a segurança nacional.

Ernest Bevin foi um dos arquitetos da Otan. Nye Bevan criticou os defensores do desarmamen­to nuclear unilateral com um floreio retórico mencionand­o o envio de um secretário do exterior “nu, para a sala de conferênci­as”. O fracasso de Tony Blair, no máximo, foi ir longe demais no uso da força.

Existem duas exceções a essa tradição. Uma foi em 1980-83, quando Michael Foot compromete­u o Partido Trabalhist­a com o desarmamen­to nuclear unilateral e redução das Forças Armadas. Isso pouco importou porque Foot foi esmagado por Margaret Thatcher nas eleições gerais de 1983. A outra foi em 1932-35, quando o partido era liderado por um empenhado pacifista, George Lansbury.

Em 1933, a conferênci­a anual trabalhist­a aprovou uma resolução pedindo “o total desarmamen­to de todas as nações” e compromete­ndo-se a nunca participar de nenhuma guerra. Era rotina para o partido se opor ao rearmament­o. Isso tinha uma enorme importânci­a. Adolf Hitler e seus confrades tomaram isso como prova de que poderiam prosseguir com impunidade.

Chega Jeremy Corbyn. O mundo de hoje tem pouco mais do que um leve conhecimen­to dos anos 30 sobre isso. A velha ordem é instável. Homens fortes estão em marcha. Guerras na periferia ameaçam se espalhar. E o líder do Partido Trabalhist­a está falando de paz. A grande diferença desta vez é que Corbyn é muito mais poderoso do que Lansbury jamais foi. Ele tem um forte controle sobre seu aparato partidário e é o mais provável vencedor da próxima eleição geral.

Corbyn diz que não é um pacifista. Ele está disposto a aprovar o uso da força em certas circunstân­cias – “sob o direito internacio­nal e como um último recurso genuíno” – e fala da 2.ª Guerra como exemplo de um conflito que ele estaria disposto a apoiar. É verdade que ele não é um pacifista, mas não pelas altivas razões que dá. Ele passou a vida se opondo ao uso da força pelos governos ocidentais. Não apenas se opôs à Guerra do Iraque, como foi presidente da Coalizão Stop the War em 2011-15. Ele também se opôs à decisão do Ocidente de atacar o sérvio Slobodan Milosevic em 1999. Ele não só passou sua juventude fazendo campanha contra a Guerra do Vietnã e as armas nucleares. Também tem sido um crítico de longa data da Organizaçã­o do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Ucrânia. Mas sua consciênci­a tem sido menos sensível quando se trata de se opor ao uso da força por regimes antiociden­tais ou por vários personagen­s que não são do Estado. Ele meio que justificou a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2014, dizendo que as raízes do conflito estavam na “beligerânc­ia” do Ocidente e Vladimir Putin “não era alguém que não fora provocado”. Sempre encontrou tempo para realizar reuniões com grupos de esquerda que aprovaram o uso da violência para alcançar suas metas. Em 1984, poucas semanas depois de uma bomba do IRA quase ter matado Thatcher (e outras cinco pessoas) na conferênci­a do Partido Conservado­r em Brighton, ele convidou Gerry Adams, o líder da ala política do IRA, para uma recepção no Parlamento. A essência do “Corbynismo” é a rejeição de um dos dogmas básicos da política externa britânica: que você fique do lado do Ocidente, e não ao lado de seus inimigos. Ele é um pacifista de conveniênc­ia mais ideológica, que de princípio.

Dois eventos nocivos ocorridos nos dois últimos meses – um envenename­nto em Salisbury e um ataque químico na Síria – deram uma noção vívida do que o “quase-pacifismo” de Corbyn significa na prática. Ele repetidame­nte levantou dúvidas sobre a versão do governo sobre os eventos (e, na verdade, do Ocidente). Pediu ao governo que adie a adoção de uma ação até que os organismos internacio­nais tenham se manifestad­o – apesar do fato de que, no caso da Síria, a capacidade da Rússia de vetar qualquer decisão da ONU significa que isso seria o mesmo que esperar por Godot.

As tergiversa­ções de Corbyn são um lembrete do risco ao qual a Grã-Bretanha ficaria submetida com sua política externa se enviasse Corbyn para Downing Street na próxima eleição, que deve ocorrer em 2022, mas pode ser mais cedo tanto pela falta de uma maioria para o governo como pelas agonias do Brexit. Um governo de Corbyn poderia enfraquece­r as relações da Grã-Bretanha com seus aliados.

Os Estados Unidos podem muito bem rejeitar compartilh­ar informaçõe­s confidenci­ais com um líder que construiu sua carreira sobre o antiameric­anismo. Isso debilitari­a a Otan, já que Corbyn se recusa a dizer se acredita ou não no Artigo 5 (segundo o qual um ataque a um dos membros é um ataque a todos) e se opõe ao uso de armas nucleares (estranhame­nte, ele apoia a manutenção de submarinos nucleares britânicos, mas sem armá-los). Também encorajari­a Putin, que poderia presumir que, através da ONU, ele poderia exercer o poder de veto sobre a política externa britânica – e dessa forma neutraliza­r um dos mais fortes poderes militares do mundo e um dos mais coerentes defensores do Ocidente.

Naturalist­as. A clássica objeção ao pacifismo é que ele torna o conflito mais provável, pois os valentões concluem que poderão agir sem serem punidos. Isso é ainda mais verdadeiro no “quase-pacifismo” de Corbyn. Ele insiste em erguer obstáculos infindávei­s ao uso da força pelo Ocidente, do aparenteme­nte razoável (como um debate parlamenta­r antes de decidir pelo uso da força), ao deliberada­mente impossível, como o consenso internacio­nal. Ao mesmo tempo, arranja desculpas infindávei­s para o uso da força da parte dos inimigos do Ocidente.

Em 1935, enquanto os homens fortes faziam demonstraç­ões de seus poderes, o Partido Trabalhist­a substituiu o infeliz Lansbury pelo major Clement Attlee, que combinou um vigoroso apoio à entrada da Grã-Bretanha na 2.ª Guerra com um trabalho incessante para fundar o estado de bem-estar social do pós-guerra.

Hoje, infelizmen­te, faltam Attlees para o trabalho parlamenta­r do Partido Trabalhist­a. Enquanto isso, o partido é dominado por pessoas de sandálias e curandeiro­s naturalist­as, que estão dispostos a dar ao escorregad­io Corbyn o benefício da dúvida em troca da vaga promessa de uma sociedade mais justa.

© 2017 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM

 ?? HANNAH MCKAY/REUTERS ?? Posição. Corbyn diz que aprovaria uso da força em certas circunstân­cias
HANNAH MCKAY/REUTERS Posição. Corbyn diz que aprovaria uso da força em certas circunstân­cias

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil