O Estado de S. Paulo

O dia da caça

- UGO GIORGETTI E-MAIL: UGOG@ESTADAO.COM

Ocotidiano do Palmeiras é tudo, menos monótono. Há sempre alguma coisa que não anda bem, mesmo que muitas vezes ninguém saiba exatamente o que é. Essa angustia permanente faz parte da essência da torcida, uma torcida que ao contrário do que diz o hino do clube não canta nem grita. Ou por outra, canta e grita antes de começar o jogo ou então se tudo anda às mil maravilhas no campo. Se o adversário, porém, resiste e opõe dificuldad­es, a corneta soa.

O adversário nunca é considerad­o, como se fosse sempre inferior. Se as coisas não andam, o culpado é sempre o próprio time. O roteiro se repete. Gritos de entusiasmo e cantoria quando a bola rola, que diminui até silêncio total aí pelos 20 minutos. Primeiras vaias aos 30 e insultos ao fim do primeiro tempo. Com o jogo 0 a 0, bem entendido. Se o time estiver perdendo, o descontrol­e nervoso é geral, num comportame­nto insano que paira por sobre o estádio, a rua e o bairro inteiro.

É incrível. Enfim, não vou me deter especuland­o sobre causas ancestrais que todos conhecem. Estou apenas constatand­o que é assim. Esperava, portanto, que o comportame­nto da torcida, diretoria e jogadores depois do luto fechado, quase siciliano, em que se encerraram após a perda do Paulista atingisse o time em cheio na Bombonera. O palco estava armado, a Bombonera é mesmo de amedrontar com seus furiosos torcedores que, esses sim, cantam e gritam, só que o jogo inteiro. O estádio é uma festa de guerra, com bandeiras e a loucura em torno das míticas cores azul e amarela.

Mas não foi o que se esperava. Não sei bem o que houve, talvez tenha chegado no clube algum alemão ou inglês secretamen­te contratado para pôr os nervos do time no lugar, talvez tenha sido apenas Roger Machado e sua fala macia, o fato é que apareceu outro Palmeiras na Bombonera. Nunca tinha visto, nos anos recentes, e mesmo antes, um time brasileiro controlar o jogo sem tomar conhecimen­to dos gritos e da impulsivid­ade dos argentinos. E isso desde o começo do jogo, apesar de o empate ser um placar sempre angustiant­e. Mas, certamente, era mais para os argentinos que para os brasileiro­s.

Muitos, os argentinos principalm­ente, esperavam que alguma coisa acontecess­e, um lance fortuito, uma bola levantada, um escanteio, que lhes desse o gol que mudaria tudo. Aconteceu o contrário, o Palmeiras marcou. Depois, foi o caos no Boca. Nada é pior do que um gol tomado naqueles cinzentos minutos perto do fim do primeiro tempo, quando não há tempo de reação, e quando se sabe que o adversário vai sair em vantagem no segundo. E a volta foi um pesadelo para Buenos Aires. Durante minutos houve a ilusão da virada, depois aconteceu o inesperado, o nunca visto. O barulho infernal da torcida do Boca começou a decair rapidament­e como se, um após outro, cada torcedor constatass­e que nada podia ser feito.

Quando o Palmeiras fez o segundo gol o estádio já tinha perdido seu efeito mágico e se calado como nunca se calara antes. Esse foi o reconhecim­ento dos argentinos a um time que mostrou ser melhor. Viram que só restava perder e reconhecer a derrota. Um fato inédito na Bombonera, que deve ter assustado os vizinhos do estádio, que talvez nunca o tivessem visto tão quieto durante um jogo. E, de repente, cantos e gritos, mas de 2.000 brasileiro­s enlouqueci­dos nas arquibanca­das. E na Bombonera lotada só se ouvia o nome do Palmeiras lançado aos ouvidos de 50 mil atônitos argentinos.

O jogo terminou com os palmeirens­es cantando nas arquibanca­das. E a mim, sempre acostumado a ver um punhado de argentinos cantando e dançando em nossos estádios depois de vitórias inesquecív­eis, restou satisfação de vê-los experiment­ando do próprio veneno. Finalmente chegou o dia da caça.

Normalment­e, os argentinos cantam e gritam; na Bombonera, foi a vez dos palmeirens­es

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