O dia da caça
Ocotidiano do Palmeiras é tudo, menos monótono. Há sempre alguma coisa que não anda bem, mesmo que muitas vezes ninguém saiba exatamente o que é. Essa angustia permanente faz parte da essência da torcida, uma torcida que ao contrário do que diz o hino do clube não canta nem grita. Ou por outra, canta e grita antes de começar o jogo ou então se tudo anda às mil maravilhas no campo. Se o adversário, porém, resiste e opõe dificuldades, a corneta soa.
O adversário nunca é considerado, como se fosse sempre inferior. Se as coisas não andam, o culpado é sempre o próprio time. O roteiro se repete. Gritos de entusiasmo e cantoria quando a bola rola, que diminui até silêncio total aí pelos 20 minutos. Primeiras vaias aos 30 e insultos ao fim do primeiro tempo. Com o jogo 0 a 0, bem entendido. Se o time estiver perdendo, o descontrole nervoso é geral, num comportamento insano que paira por sobre o estádio, a rua e o bairro inteiro.
É incrível. Enfim, não vou me deter especulando sobre causas ancestrais que todos conhecem. Estou apenas constatando que é assim. Esperava, portanto, que o comportamento da torcida, diretoria e jogadores depois do luto fechado, quase siciliano, em que se encerraram após a perda do Paulista atingisse o time em cheio na Bombonera. O palco estava armado, a Bombonera é mesmo de amedrontar com seus furiosos torcedores que, esses sim, cantam e gritam, só que o jogo inteiro. O estádio é uma festa de guerra, com bandeiras e a loucura em torno das míticas cores azul e amarela.
Mas não foi o que se esperava. Não sei bem o que houve, talvez tenha chegado no clube algum alemão ou inglês secretamente contratado para pôr os nervos do time no lugar, talvez tenha sido apenas Roger Machado e sua fala macia, o fato é que apareceu outro Palmeiras na Bombonera. Nunca tinha visto, nos anos recentes, e mesmo antes, um time brasileiro controlar o jogo sem tomar conhecimento dos gritos e da impulsividade dos argentinos. E isso desde o começo do jogo, apesar de o empate ser um placar sempre angustiante. Mas, certamente, era mais para os argentinos que para os brasileiros.
Muitos, os argentinos principalmente, esperavam que alguma coisa acontecesse, um lance fortuito, uma bola levantada, um escanteio, que lhes desse o gol que mudaria tudo. Aconteceu o contrário, o Palmeiras marcou. Depois, foi o caos no Boca. Nada é pior do que um gol tomado naqueles cinzentos minutos perto do fim do primeiro tempo, quando não há tempo de reação, e quando se sabe que o adversário vai sair em vantagem no segundo. E a volta foi um pesadelo para Buenos Aires. Durante minutos houve a ilusão da virada, depois aconteceu o inesperado, o nunca visto. O barulho infernal da torcida do Boca começou a decair rapidamente como se, um após outro, cada torcedor constatasse que nada podia ser feito.
Quando o Palmeiras fez o segundo gol o estádio já tinha perdido seu efeito mágico e se calado como nunca se calara antes. Esse foi o reconhecimento dos argentinos a um time que mostrou ser melhor. Viram que só restava perder e reconhecer a derrota. Um fato inédito na Bombonera, que deve ter assustado os vizinhos do estádio, que talvez nunca o tivessem visto tão quieto durante um jogo. E, de repente, cantos e gritos, mas de 2.000 brasileiros enlouquecidos nas arquibancadas. E na Bombonera lotada só se ouvia o nome do Palmeiras lançado aos ouvidos de 50 mil atônitos argentinos.
O jogo terminou com os palmeirenses cantando nas arquibancadas. E a mim, sempre acostumado a ver um punhado de argentinos cantando e dançando em nossos estádios depois de vitórias inesquecíveis, restou satisfação de vê-los experimentando do próprio veneno. Finalmente chegou o dia da caça.
Normalmente, os argentinos cantam e gritam; na Bombonera, foi a vez dos palmeirenses