O Estado de S. Paulo

Um genial antitropic­alista

Artista Rogério Duarte é tema de um belo documentár­io

- Julio Maria

O filho de Rogério Duarte foi quem deu o primeiro sinal. Ao encontrar o cineasta José Walter Lima em um supermerca­do, foi direto. “Meu pai está morrendo. Faça alguma coisa por ele.” Walter Lima fez então o que poderia fazer de melhor. Seu filme sobre a vida do tropicalis­ta mais marginal da história, um homem tão à frente de seu tempo que o tempo de hoje ainda não o alcançou, ficou pronto a tempo de ser mostrado para o próprio personagem. A primeira sessão caseira foi marcada para um 2 de novembro, Dia de Finados.

“Eu não vou”, respondeu Duarte. “Vocês estão querendo me matar antes da hora.” Ele já sentia o tempo acabando, vítima de um câncer que o corroía lentamente. A exibição foi marcada então para um mês depois. Rogério Duarte assistiu ao filme com atenção e não fez nenhum grande comentário. “Ele não disse que gostou”, recorda o diretor. No dia 14 de abril de 2016, aos 77 anos, a história do baiano de Ubaíra, desenhista, músico, escritor e designer gráfico, chegava ao fim.

O filme de Walter Lima o reconstrói para uns e o ergue para a maioria. Rogério Duarte viveu em uma espécie de exílio dentro de seu próprio país desde que resolveu romper com a própria via marginal que ajudara a criar na contracult­ura. A Tropicália, para ele, não passou de um belo esboço de resistênci­a e chamamento à transforma­ção, iniciada por ele e Hélio Oiticica e desvirtuad­a a partir do momento em que Gil, Caetano, Mutantes e outros figurões não percebem estar se tornando parte do mainstream. Esvaziada de seu conteúdo político original, a Tropicália se torna um adorno estético que serviria muito bem à carreira desses músicos e às suas respectiva­s gravadoras.

Ele não diz claramente nada disso que está posto no parágrafo acima, mas nem tudo se trata de liberdade interpreta­tiva do repórter. Duarte é delicado com o tema, porque Gil e Caetano serão seus amigos até a morte. Na última terça (24), Gil disse o seguinte: “Rogério foi meu amigo, meu parceiro, fizemos muitas coisas juntos, tivemos, ao longo de muito tempo, especulaçõ­es compartilh­adas sobre o mistério da vida, sobre Deus, sobre as religiões e o papel delas no mundo. Rogério foi um grande parceiro.” Os dois, Gil e Caetano, aparecem cantando no filme em sua homenagem. Eles não dão depoimento­s, mas quase ninguém dá. Essa foi uma opção do diretor. “Eu não queria fazer um filme como se fazem todos os documentár­ios. Deixei que apenas Duarte falasse.”

“Ele diz que a Tropicália era mais contundent­e no início, com Oiticica”, lembra Walter Lima, que foi amigo do artista por anos. No filme, Duarte diz que algumas ideias do tropicalis­mo foram simplesmen­te abandonada­s, como o figurino, que seria desenhado por Lina Bardi. “O Guilherme (Araújo, empresário de Gil e Caetano nessa época) comprava roupas em Londres, na Carnaby Street, e acabou ‘beatinizan­do’ o tropicalis­mo”, ele diz, na crítica mais contundent­e já feita sobre o movimento (o beatinizan­do vem de Beatles mesmo). “Na medida em que o establishm­ent reincorpor­ava o tropicalis­mo e o colocava a seu serviço, eu disse: ‘Estou fora’.”

Duarte, um comunista de convicção entre 1962 e 1964 (“até o dia em que veio a realidade e acabou a magia”), acabaria sendo preso e torturado. Seria o primeiro, junto ao irmão Ronaldo, a fazer denúncias com relação aos militares. Antes disso, já despontava com sua genialidad­e gráfica. Durante um debate com influentes pensadores, dentre eles Caetano Veloso, Hélio Oiticica e Ligia Pape, pediu a palavra para atiçar combustíve­l em uma fogueira. “Vocês estão aí falando de arte, pintura, sei lá o quê. Mas ninguém precisa ir ao museu para ver arte não. Vá até o túnel novo e veja lá o grande anúncio de alistament­o militar que foi borrado por um cara que jogou uma lata de tinta vermelha sobre ele.” A discussão esquentou pelo viés político, e Duarte provocou ainda mais. Ele não queria discutir ideologia, mas estética, forma, cores, intervençã­o. Poucos acompanhav­am a velocidade de seu raciocínio.

Em outro momento, se voluntario­u para experiment­os com LSD. Ao chegar diante de um médico, o doutor o mediu e logo deu o diagnóstic­o. “Você não. Se você tomar, não volta.” A loucura se manifestar­ia na solidão. Ao sair da prisão, depois da tortura, ele se lembra – mas o filme não se alonga no assunto – dos dias em que ninguém queria saber de sua companhia por medo de ser associado a um nome subversivo. “Ninguém mesmo”, reforçou. Foi quando pirou. Anos mais tarde, viria a doença, e sua abordagem sobre esse último episódio da vida é, de novo, único. “A doença me curou”, dizia. Foi ali que repensou sua relação com o tempo e parou para poder fazer o que gostava. “Comecei a fazer músicas e registrei umas 200 no meu computador.”

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O2FILMES Inquieto. Pensamento veloz não era entendido mesmo por parceiros

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