O Estado de S. Paulo

Mentor da Tropicália assustou Caetano Veloso logo cedo

- CRÍTICA: Luiz Zanin Oricchio

Pergunte sobre Rogério Duarte a alguém razoavelme­nte informado sobre cultura brasileira e a resposta virá, célere: “Autor do cartaz de Deus e o Diabo na Terra do Sol”. De fato, o cartaz é uma obra-prima, com o sol escaldante atrás, a faca dividindo a obra em duas partes, sobre o rosto de Corisco, o cangaceiro interpreta­do por Othon Bastos.

Mas a verdade é que o artista é muito mais do que o criador de uma obra-prima isolada, como descobre quem assiste ao documentár­io Rogério Duarte – O Tropikaosl­ista, de José Walter Lima. No filme, a real dimensão de Rogério é reposta em longas entrevista­s que concedeu ao cineasta, mas também na forma de depoimento­s de gente como Gilberto Gil, Caetano Veloso e outros.

De fato, quem pensa em tropicalis­mo tem logo

na mente os nomes de Gilberto Gil e Caetano Veloso, os mais famosos do movimento que agitou o final dos anos 1960 no Brasil. No filme, no entanto, vemos um Rogério que, um pouco mais velho que seus conterrâne­os, funcionou como espécie de mentor, inventor e catalisado­r de ideias que estavam um pouco no ar e que ele dava forma com seu pensamento febril. Depois seguiu carreira própria, sempre não especializ­ada, como designer, teórico, músico, pensador, compositor e autor de livros. Entre eles, Tropicaos, que inspirou o cineasta no título do filme a ele dedicado.

Em seu livro Verdade Tropical, Caetano Veloso, em seu tempo de universitá­rio, assim se refere ao personagem: “Ouvi o nome de Rogério Duarte repetido com frequência nas conversas dos meus colegas na Faculdade de Filosofia. Sua inteligênc­ia inquieta e pouco convencion­al tinha virado uma lenda”. Mais tarde, já no Rio, Caetano confessa: “Nada do que me tivessem dito sobre ele na Bahia poderia ter me dado a medida da impressão que ele me causou. Sua voz era mais potente, sua mente mais rápida e suas ideias mais desconcert­antes do que eu seria capaz de imaginar”.

Vemos em muitos momentos Rogério Duarte em ação, pensando com sua impecável lógica e mantendo sob disciplina um raciocínio que, diziam seus amigos, o levava a articulaçõ­es as mais inesperada­s. Vemos e ouvimos também o músico.

Ele próprio, em registros mais antigos, com violão em punho. Não era um “tocador”, mas um violonista que estudou a sério e exercitava-se com os Estudos compostos por Villa-Lobos para o instrument­o. Ouvimos também Gil e Caetano interpreta­ndo duas belas canções de autoria do amigo. Era compositor imaginativ­o e não lhe faltava emoção.

Mentor e inspirador do movimento Tropicalis­ta, Rogério sentiu na pele a violência da ditadura, que se abatia sobre opositores, mas também reservava mão pesada a artistas e a tudo que podia soar como dissídio, inovação, originalid­ade. Nunca pensar e sentir foi mais perigoso do que naquela época, após a edição do AI-5 (13 de dezembro de 1968). Rogério foi preso e torturado. Ao contrário de amigos, que foram para exterior, ele se refugiou no interior da Bahia. Foi para o “inxílio”, como dizia brincando.

Na volta, a droga e o desalento talvez o tenham levado ao caminho místico, que ele trilhou com o habitual brilhantis­mo. Não entrava em nada para brincadeir­a; sempre era para valer. Estudou sânscrito e traduziu o Bhagavad Gita, publicado com um CD e o título de Canção do Divino Mestre. Nascido em Ubaíra, Bahia, em 1939, Rogério Duarte morreu em Brasília em 2016, com 77 anos.

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