O Estado de S. Paulo

Espanhóis

- VERISSIMO LUIS FERNANDO VERISSIMO ESCREVE ÀS QUINTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Uma vez fui a uma feira de livros em Miami e acabei num jantar para os convidados latino-americanos, oferecido pela comunidade hispânica da cidade. Arroz com pollo. O único outro brasileiro no jantar era o Milton Hatoum. O amazonense Milton não só falava um espanhol perfeito como – o mais surpreende­nte e humilhante para mim, que como gaúcho me considerav­a um quase platino com pleno domínio do espanhol – compreendi­a tudo que os outros falavam. Eu não compreendi­a nada. Ou apenas o suficiente para notar que o assunto principal dos presentes era Cuba, de onde a maioria era natural. Pareciam falar com uma mistura de nostalgia e rancor, mas foi só uma impressão que não confirmei com o Milton. O que me espantou foi minha incapacida­de de entendê-los. Não falar o espanhol não era nada, eu também mal falo português. Mas, durante todo o jantar, só entender “más arroz?” e pouca coisa mais era desconcert­ante. Eu estaria bloqueando o que ouvia? Me sentindo tão deslocado, ali, que me recusava a entender o que diziam?

O espanhol da Espanha não é o mesmo falado nas Américas e o espanhol (por exemplo) argentino não é igual ao mexicano. Cada fala espanhola seguiu seu curso a partir da vertente comum, mas aquele espanhol dos exilados cubanos era de uma estranheza extrema, ao menos aos meus ouvidos. Era como uma língua que tivesse se deteriorad­o ao ponto de virar outra, só compreensí­vel pelos seus usuários. E pelo Hatoum. Me ocorreu que na apreciação do que aconteceu em Cuba depois da revolução do Fidel as opiniões tinham se diversific­ado tanto que pareciam línguas diferentes. A narrativa inicial da revolução fora num espanhol puro, que ninguém discutia: um governo tirano e corrupto derrubado por jovens idealistas dispostos a fazer uma sociedade limpa e justa. Uma narrativa clássica. Mas com seus primeiros atos Fidel e seus companheir­os começaram a divisão das línguas, que foram se distancian­do com o tempo e hoje são idiomas estanques: o dos que nunca perderam a admiração pela experiênci­a cubana, o dos que se desiludira­m um pouco ou completame­nte e o dos que não perdoam o que Fidel fez, com Cuba e com eles, forçando-os ao exílio. Cada um fala o seu espanhol e não entende o do outro. Entre eles nenhum consenso é possível, com ou sem “arroz com pollo”.

A recente “abertura” determinad­a pelo Raúl Castro, desde que os americanos a endossem, pode diminuir a distância entre os idiomas e favorecer o diálogo. O novo presidente cubano já disse bobagem, defendendo a censura à imprensa, que, segundo ele, todo o mundo faz. Mas não há porque não acreditar numa abertura sem aspas, que venha com o tempo. E a nova Cuba possa construir em cima do legado deixado pelos Castros, a priorizaçã­o da saúde pública e da educação gratuita.

Miami foi o mais perto que já cheguei de Cuba, mas minha filha Fernanda esteve lá, há alguns anos. Numa festa, conheceu o irmão mais velho de Fidel, Ramón, que foi muito simpático. Conversara­m sobre a novela brasileira que fazia sucesso na TV cubana, na época, e dom Ramon disse que daria qualquer coisa para saber como terminava Vale Tudo. E comentou: “Como es mala Maria de Fátima!”. Os dois não tiveram problema de língua. Falavam Globo.

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