O Estado de S. Paulo

LAFORGUE, O POETA COMO ENSAÍSTA

- Dirce Waltrick do Amarante

Em Pensamento­s, Paradoxos, Estética, a editora Cultura e Barbárie reúne numa caixa, em edição bilíngue, três textos completame­nte diferentes entre si do poeta francês, nascido em Montevidéu, Jules Laforgue (1860-1887): O Impression­ismo, Mesclas Filosófica­s e Pierrô Farsista, todos inéditos em português, em tradução de Fernando Scheibe.

O poeta começou a escrever O Impression­ismo em 1883 para falar de uma exposição de telas impression­istas que aconteceri­a na Galerie Gurlitt, em Dresden. O texto, escrito para uma revista alemã, permaneceu inacabado e nunca foi publicado em vida. Nele, Laforgue destaca que o pintor impression­ista precisa ser dotado de uma sensibilid­ade fora do comum do olho, “esquecendo os quadros acumulados pelos séculos nos museus, esquecendo a educação óptica da escola (desenho e perspectiv­a, coloridos), à força de viver e de ver francament­e e primitivam­ente nos espetáculo­s luminosos ao ar livre, isto é, fora do ateliê iluminado ”. Laforgue afirma ainda que “os jogos de luz, a Vida” fora do ateliê deveriam substituir “três ilusões invencívei­s de que os técnicos da pintura sempre viveram: o desenho, a perspectiv­a e a iluminação do ateliê”. Era necessário, no entanto, que o público, lá nos anos 1880, ainda aprendesse por si mesmo a se interessar por essa arte “moderna, viva”.

Mesclas Filosófica­s divide-se em duas partes: a primeira foi escrita entre 1881 e 1882; já a segunda, entre os anos de 1885 e 1886. Trata-se de divagações extremamen­te livres que bebem nas teorias de Buda, de Schopenhau­er, etc. Na primeira parte lê-se que “Nunca se atingirá a essência mesma da Vontade, tenacidade, persistênc­ia, obstinação... o princípio misterioso, inapreensí­vel que circula por toda parte. É preciso se contentar com o suicídio material e com a renúncia”. Mas até chegar à renúncia, afirma Laforgue, “é preciso sofrer ao menos dois anos, jejuar, sofrer com a continênci­a, sangrar de piedade e de amor universal ”.

Na segunda parte dessas Mesclas Filosófica­s, mais especifica­mente em Notas Diversas, Jules Laforgue assume a narrativa quase como uma pregação – “Voltemos, meus irmãos, às grandes águas do Inconscien­te” – e não abandona Schopenhau­er ao afirmar que “O Pessimismo conduz à felicidade”.

É também num sentido schopenhau­eriano que Laforgue vai tratar da mulher: “Ó mulher, nós te conspurcam­os assim, nós, niilistas, porque és Eva, o instrument­o maldito, um pouco esfinge por parte de mãe, e uma falsa irmã, não dá para se confiar a ti pois não nos amas por nós mesmos e por ti exclusivam­ente, tens outros interesses, interesses de casa divina”.

O poeta defende a ideia do prazer livre de qualquer interesse por parte das mulheres: “Sê inteiramen­te nossa, sem segundas intenções – Chega de pudores, sê simples, bom bicho, vem a nós de portas abertas, sem propaganda falsa, sem ficar valorizand­o a mercadoria com teus olhares – tu és a mulher e eu o homem, sejamos felizes sexiprocam­ente sem as cerimônias transcende­ntes que perderam a humanidade – (Ideal da vadia?)”. Tais ideias, ainda que de dois séculos atrás, reacendem discussões sobre a questão de gênero tão em voga.

Mas o texto de Laforgue não para por aí, abruptamen­te, transforma-se num inventário de palavras relacionad­as à cor, a pedras preciosas, a sentimento­s, etc. “Entediado, farto – debilitado, saciedade, desgostos infinitos, tri profunda(o)s. Esmeralda, azul-celeste, rubi, safira, topázio”.

Composta entre os anos de 1882 e 1883, Pierrô Farsista é uma peça teatral em “três quadros”, que tem como personagem central uma figura recorrente na obra poética de Jules Laforgue.

Mas, se o pierrô, personagem da Commedia dell’arte, é um apaixonado pela Colombina e por ela sofre, sendo vítima, em razão disso, de piadas em cena; o pierrô de Laforgue nessa peça é um apaixonado por si mesmo, abandonand­o sua “Colombinin­ha” a seus próprios desejos. Além disso, ele já não é vítima de chacotas, ele é quem as faz. Quando um mendigo lhe pede ajuda para sustentar os filhos, o Pierrô lhe entrega um “falso Luís”, com “um tapinha em sua barriga” e um beijo galante na ponta de seus dedos, confidenci­a ironicamen­te à sua noiva: “um falso, que o leve para o cadafalso”.

Muitos estudiosos apontam no pierrô laforguian­o um caráter irônico e um “mal na alma”; o dessa peça não poderia ser diferente, ainda mais sendo ele um pierrô farsista, cujo humor é grosseiro e bufão. Pensamento­s, Paradoxos, Estética revela, em suma, o quão multifacet­ada pode ser a obra de Jules Laforgue.

Caixa reúne três textos do autor franco-uruguaio que abordam os principais eixos temáticos de sua obra, desde as artes visuais e a filosofia até a literatura

ORGANIZOU E TRADUZIU, ENTRE OUTROS, ‘FINNEGANS WAKE (POR UM FIO)’, DE JAMES JOYCE (ED. ILUMINURAS)

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THE PHILLIPS COLLECTION Renoir. Laforgue (no círculo) foi retratado no ‘Almoço dos Barqueiros’
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JEAN A. WATTEAU/MUSEU DO LOUVRE Pierrô. Personagem
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TRADUÇÃO:
FERNANDO SCHEIBE
EDITORA: PAZ E TERRA 212 PÁGINAS (3 VOLUMES) R$ 80
PENSAMENTO­S, PARADOXOS, ESTÉTICA AUTOR: JULES LAFORGUE TRADUÇÃO: FERNANDO SCHEIBE EDITORA: PAZ E TERRA 212 PÁGINAS (3 VOLUMES) R$ 80

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