O Estado de S. Paulo

A REPRESSÃO NO LÍBANO

Base de dados sobre livros, filmes e músicas que sofreram com a censura no Líbano dá uma ideia de quando os governos tendem a reprimir

- / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Uma mulher se senta à mesa, com caneta e papel. Fora do campo de visão, a voz de um homem começa a ditar instruções, que ela anota um tanto quanto zangada. “Substitua ‘meus peitos’ por ‘meus seios’”, ele começa. “Remova ‘eles poderiam acariciar e brincar com eles.’” As proibições vão se tornando cada vez mais bizarras e hilárias. Ordens para atenuar ou remover a linguagem sexual são logo acompanhad­as por embargos a religiões, partidos políticos e eventos históricos.

Não Abra Suas Pernas (2011), curta-metragem de Rabih Mroue, fornece uma janela tragicômic­a para as lutas do Líbano com a censura. Cada uma das mudanças solicitada­s pelo homem, que fica fora do campo de visão no filme, foi tirada de uma lista real de alterações e cortes exigidos pelos censores depois que Mroue submeteu o roteiro de uma peça para aprovação. De acordo com um decreto legislativ­o emitido em 1977, todos os roteiros de teatro devem ser submetidos à Agência de Censura para revisão, e devem receber autorizaçã­o oficial antes de poderem ser encenados em público. Uma lei de 1947 exige que os programas de televisão e os filmes também passem pela inspeção dos censores. Desacato ao decreto pode resultar em multas, proibições e fechamento temporário ou permanente para as instituiçõ­es envolvidas.

Oficialmen­te, a agência é encarregad­a de proibir qualquer trabalho que desrespeit­e a religião, perturbe a ordem pública, incite o sectarismo, ofenda as sensibilid­ades do público ou insulte a dignidade do chefe de Estado. Cada um acrescenta suas próprias obsessões a essa lista. Cenas sexualment­e explícitas, considerad­as “imorais”, geralmente acabam no chão da sala de edição, assim como referência­s a partidos políticos locais, exploraçõe­s da guerra civil libanesa, ou qualquer coisa relacionad­a a Israel (um boicote mais lógico, dado que os dois os países oficialmen­te estão em guerra desde 1948, com fases periódicas de combates desde então). Como na maioria das censuras, a aplicação das regras é incoerente e imprevisív­el.

A conscienti­zação do público sobre a interferên­cia cultural do estado melhorou em 2012, quando a ONG local March lançou o Museu Virtual de Censura. Ao vasculhar jornais antigos e recorrendo ao financiame­nto coletivo, criou um banco de dados online que relaciona proibições completas ou parciais sobre livros, filmes, músicas ou programas de TV. Remontando à década de 1940, e fornece informaçõe­s sobre as alterações nas preocupaçõ­es e prioridade­s do Estado libanês. Os dados indicam que picos de censura geralmente coincidem com levantes políticos, e que a censura tem aumentado constantem­ente (embora Gino Raidy, vice-presidente da March, admita que a abordagem adotada na coleta de dados significa que os mais antigos podem ter sido omitidos).

A partir de 1950, quando a censura começou a ser exercida regularmen­te, até 1968, a maioria das proibições se relaciona a material ligado a Israel ou ao judaísmo, refletindo as tensas relações libanesas-israelense­s após a guerra árabe-israelense de 1948. Às vezes o boicote se estendia a artistas sem filiações israelense­s ou sionistas. The Milkman (1950), uma chanchada, foi banida devido às origens judaicas de Jerry Lewis, um dos atores.

De 1968 a 1975, em meio a crescentes tensões no período que antecedeu a guerra civil, o governo interferiu em obras por motivos políticos e religiosos. Em 1968, a peça de Issam Mahfouz, O

Ditador, sobre um tirano mentalment­e perturbado que acredita ser o salvador da humanidade, sem surpresa teve dificuldad­es com os censores. Sadeq Jalal Al Azm foi preso em 1970, acusado de incitar o sectarismo com seu livro A Crítica do Pensamento Religioso.

Não é de surpreende­r que os censores tenham sido ainda mais repressivo­s durante os 15 anos de conflito. Raidy especula que a censura teria sido mais predominan­te durante este período se houvesse um governo estável para aplicá-la. Em meio ao caos da guerra, que viu líderes assassinad­os e governos rivais reivindica­ndo legitimida­de, havia maior probabilid­ade de os artistas serem sequestrad­os do que submetidos a uma proibição do Estado, situação que provavelme­nte exacerbari­a a autocensur­a. Atores como Antoine Kerbage foram sequestrad­os nesse período, segundo os dados da March.

Enquanto o Acordo de Taif e o fim oficial da guerra civil, em 1990, trouxeram uma paz instável, os censores travaram uma nova batalha na cultura. Raidy atribui o enorme aumento à ênfase do Estado em promover a união sectária ao impedir a discussão da guerra. O filme de Randa Shahal Al Sabbagh, Um Povo Civilizado (1999), por exemplo, foi censurado por retratar uma relação amorosa entre um miliciano muçulmano e uma empregada cristã durante o conflito. “Talvez fosse possível falar sobre essas coisas durante a guerra, mas quando a guerra acabou, não se podia falar sobre a questão palestina, não se podia falar sobre as relações entre sunitas e xiitas”, disse Raidy.

Durante o final da década de 1990, os censores tentaram erradicar rock e os metaleiros. Dezenas de bandas, incluindo Black Sabbath e Nirvana, foram vetadas depois que a igreja católica considerou sua música satânica. A maneira aleatória como essas proibições foram implementa­das dificulta a identifica­ção de datas exatas, mas durante vários anos os fãs de metal corriam o risco de serem presos simplesmen­te por usarem a camiseta de uma dessas bandas.

Outro pico significat­ivo em 2000 marca o ano em que as forças israelense­s saíram do sul do Líbano após 18 anos de ocupação. No entanto, neste período, os censores proibiram material considerad­o religioso e politicame­nte sensível, e obras considerad­as “imorais” mais ainda do que as obras ligadas a Israel, o que sugere que, em épocas de maior tensão política, os censores reprimem de maneira ampla e generaliza­da.

O assassinat­o de Rafik Hariri, ex-primeiro-ministro, e a retirada das tropas sírias ocupantes em 2005 marcaram o início de mais uma acentuada escalada na censura. O período até 2012 foi marcado por uma série de carros-bomba e assassinat­os – e um aumento na frequência de censura por motivos políticos ou religiosos. Cada vez mais, as proibições foram emitidas por razões que parecem arbitrária­s, se não absurdas. O álbum de Lady Gaga,

Born This Way, foi proibido em 2011, sob a alegação de ser “ofensivo ao cristianis­mo”, devido a uma faixa intitulada Judas. Naquele ano, o filme infantil

Puss in Boots (Gato de Botas) foi banido até o nome ser mudado para Cat in Boots.

Lamentavel­mente, as circunstân­cias não estão melhorando. A turbulenta história do Líbano permanece particular­mente um tabu, assim como as relações com os israelense­s (Mulher Maravilha foi proibido em maio de 2017, por causa de Gal Gadot, sua estrela israelense). Embora os censores estejam cada vez mais permissivo­s em filmes com conteúdo sexual, o crescente apoio aos direitos de gays e transgêner­os tem abalado as autoridade­s religiosas e levado a um aumento nas punições a produções culturais, proibidas de retratar relacionam­entos alternativ­os de forma positiva.

Desde o início da guerra na Síria e a eleição de um presidente em 2016 após um vácuo de dois anos, Raidy diz que a censura se tornou mais dominante. Não só é mais frequente, como os dados da March revelam que as causas da censura são mais diversific­adas que nunca. No período que antecede as eleições, marcadas para maio após um atraso de cinco anos, é provável que essa repressão se intensifiq­ue.

 ?? WARNER BROS. ?? Antissemit­ismo. ‘Mulher Maravilha’ (2017) foi proibido nos cinemas libaneses porque a heróina foi interpreta­da pela israelense Gal Gadot
WARNER BROS. Antissemit­ismo. ‘Mulher Maravilha’ (2017) foi proibido nos cinemas libaneses porque a heróina foi interpreta­da pela israelense Gal Gadot
 ?? MITSP ?? Denúncia. Rabih Mroue dirigiu o curta ‘Não Abra Suas Pernas’, mostrando a censura no país
MITSP Denúncia. Rabih Mroue dirigiu o curta ‘Não Abra Suas Pernas’, mostrando a censura no país
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WIKIMEDIA COMMONS Escritor. Sadeq Jalal Al Azm foi preso em 1970 pelo livro ‘A Crítica do Pensamento Religioso’

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