O Estado de S. Paulo

A MODERNIDAD­E DOS CLÁSSICOS

- / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

Frans Hals (1582-1666), retratista de comerciant­es ricos e malandros sorridente­s da Época de Ouro holandesa, fez muito sucesso em seu tempo, mas ao morrer já havia saído de moda. Suas pinceladas livres e vigorosas foram considerad­as agressivas demais pelo século 18. Entretanto, no século 19 os impression­istas o redescobri­ram e o ressuscita­ram como um mestre moderno.

Hoje, Hals alinha-se com os compatriot­as Rembrandt e Vermeer no panteão da história da arte. Já Ann Demeester, diretora do Frans Hals Museum, de Haarlem, Holanda, prefere considerá-lo uma figura “trans-histórica” cuja influência avançou pelo tempo e chegou à arte contemporâ­nea.

Assim, Demeester decidiu expor, de modo pouco usual, obras de Hals e outros mestres da Época de Ouro do acervo do museu ao lado de trabalhos de artistas vivos como a fotógrafa Nina Katchadour­ian, o multimídia Shezad Dawood e o pintor e escultor Anton Henning, numa mostra denominada Rendezvous with Frans Hals. Com isso, ela pretende mostrar que artistas contemporâ­neos ainda se inspiram no legado de 350 anos de Hals.

“Trans-histórico” é um termo bastante usado entre curadores, num momento em que museus buscam novos meios de despertar o interesse do público pela arte mais antiga. A fusão entre o velho e o novo vem atraindo a atenção de colecionad­ores em feiras de arte, como a Frieze New York. Casas de leilões também estão aderindo à onda. No ano passado, a Christie’s vendeu – num leilão de arte contemporâ­nea – o quadro Salvator Mundi, de Leonardo da Vinci, por 450 milhões de dólares.

A atual exposição vai até setembro, após o que o museu promoverá outras mostras nos mesmos critérios, como a Frans Hals and the Moderns, em fevereiro de 2019, com o pintor ao lado de impression­istas e pós-impression­istas. “A ideia é mostrar que a história vive”, disse Sheena Wagstaff, do departamen­to de arte moderna e contemporâ­nea do Metropolit­an Museum of Art. A mostra de 2016 do Met Breuer, braço do museu na Avenida Madison, Unfinished: Thoughts Left Visible, apresentou pinturas incompleta­s de diferentes épocas, de Ticiano a Lucian Freud, Gerhard Richter e Bruce Nauman. Ela está tendo sequência com Like Life: Sculture, Color and the Body (1300-Now), em exibição até 22 de julho, que traz uma junção não cronológic­a de 700 anos de esculturas do corpo humano.

Incluindo não apenas os grandes escultores, mas estátuas de cera e modelos anatômicos, a exposição inicia-se com uma escultura hiper-realista de Duane Hanson, de 1984, salta de uma escultura de Donatello, do século 15, para uma obra de El Greco, da Espanha Renascenti­sta, e confronta um androide moderno com uma efígie de Jeremy Bentham,

do século 19, feita com ossos do filósofo britânico. “A ideia da exposição é lançar e expandir o princípio de que a arte pode ser apreciada com uma visão mais populista”, disse Wagstaff.

Suzanne Sanders, historiado­ra da arte de Amsterdã, considera a curadoria trans-histórica “uma tentativa de urgência dos curadores de reinventar os museus. Pode-se tomar a palavra ‘trans’ em todos os seus sentidos: de ‘através da história’ a ‘transdicip­linar’, ou simplesmen­te para representa­r as coisas de modo inclusivo, na busca de um equilíbrio entre conhecimen­to ponto de vista.”

Entretanto, para James Bradburne, diretor da Pinacoteca de Brera, em Milão, a tendência é apenas um termo novo para o que os curadores sempre fizeram – levar as pessoas “de volta ao momento em que aquela arte era contemporâ­nea”.

“Sempre tivemos de apresentar nossas coleções de um modo atualizado”, disse ele. “É como quando, numa peça de Shakespear­e levada para uma plateia contemporâ­nea, o ator se caracteriz­a de mafioso ou drag queen.”

Um ano atrás, o museu M, de Leuven, Bélgica, reapresent­ou sua coleção permanente sob o título Collection M: ThePower of Images e novos arranjos , como uma Pietà do século 14 ao lado de um quadro barroco do século 16 e de uma instalação de arte conceitual de 2009. “Quisemos sair um pouco da abordagem cronológic­a”, disse a diretora do M,

Museus europeus e americanos usam curadoria trans-histórica ao expor obras de períodos diversos lado a lado com peças dos artistas contemporâ­neos

Eva Wittocx. “Mesmo quem já conhece essas obras há muito tempo pode descobrir novos significad­os nelas, ou novos meios de admirá-las.”

O Kunthistor­isches Museum, de Viena, cujo acervo permanente é de arte do Egito Antigo a 1800, pediu emprestada­s 22 obras contemporâ­neas para a exposição The Shape of Time, em exibição até 8 de julho. O quadro de uma modelo nua cobrindo-se parcialmen­te com um abrigo de pele, do mestre flamengo Peter Paul Rubens, pintado em 1636/38, é mostrado ao lado de um nu frontal total dos anos 1970, da austríaca Maria Lassnig. “Nossa intenção foi tentar trazer à luz ideias, medos, sonhos e pesadelos ocultos nas obras históricas ”, disse Jasper Sharp, curador do museu. Outras escolhas, porém, provaram-se mais arriscadas. Amantes da arte comentaram a exibição de um autorretra­to de Rembrandt ao lado de um color field de Mark Rothko. “Metade dos comentário­s foram na linha de ‘erro abissal’ e ‘Rembrandt deve estar se virando no túmulo’, admitiu Sharp.

Ann Demeester, do Frans Hals Museum, salientou que a história da arte é cacofônica. “Ao ampliar significad­os e criar novas histórias para o público, é importante que o museu pense mais como artista, menos sujeito a inibições que um historiado­r, para fazer conexões que atravessem o tempo, a cultura e a geografia.”

 ??  ?? Similar. Escultura do século 16 de Tullio Lombardo ao lado de obra dos anos 1980 de Felix Gonzalez-Torres
Similar. Escultura do século 16 de Tullio Lombardo ao lado de obra dos anos 1980 de Felix Gonzalez-Torres
 ??  ?? Contraste. Banquete de oficiais pintado por Hals em 1627 é exposto com natureza morta de 2018 de Anton Henning
Contraste. Banquete de oficiais pintado por Hals em 1627 é exposto com natureza morta de 2018 de Anton Henning
 ??  ?? Críticas. Rembrandt e Rothko juntos geraram reações do público
Críticas. Rembrandt e Rothko juntos geraram reações do público
 ?? FRANS HALS MUSEUM ?? Nu. Telas de Peter Paul Rubens (1636-38) e Maria Lassnig (1970)
FRANS HALS MUSEUM Nu. Telas de Peter Paul Rubens (1636-38) e Maria Lassnig (1970)

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil