O Estado de S. Paulo

PENSADOR MOSTRA QUE OS EQUÍVOCOS SÃO BENÉFICOS

- Rodrigo Petronio

A difusão da filosofia para o grande público se encontra em um de seus melhores momentos. O sucesso de séries como a catalã Merlí (Netflix), protagoniz­ada pelo heterodoxo professor dessa disciplina, revela esse interesse renovado. Multiplica­mse os programas de televisão e de rádio, bem como grupos de estudos dedicados à filosofia. Alguns livros de divulgação das principais ideias, obras e autores têm se destacado nas listas dos mais vendidos. A despeito disso espelhar ou não uma maior consistênc­ia da filosofia contemporâ­nea, o amplo interesse precisa ser compreendi­do e destacado como fenômeno cultural de relevância.

Nessa chave podemos compreende­r o trabalho do filósofo, escritor e professor francês Charles Pépin. Além de professor do Liceu d’Etat de la Légion d’Honneur de Saint Denis (Paris), Pépin enche todas as semanas o auditório do cinema MK2 Odéon com seu programa Filosofia às Segundas. Já foi colaborado­r dos programas de televisão Culture et Dépendance­s (France 3) e En Aparté (Canal +). Atualmente assina colunas mensais nas revistas Philosophi­e e Psychologi­es.

Uma boa porta de entrada para seu trabalho é uma de suas obras mais famosas: As Virtudes do

Fracasso. Desde a publicação em 2016, vendeu 65 mil exemplares na França e foi publicada em 14 países. A obra acaba de sair do prelo no Brasil pela Estação Liberdade em excelente tradução de Luciano Vieira Machado. E pode dar um novo fôlego ao papel da filosofia no debate público e na formação de novos leitores, justo em um momento em que disciplina­s como filosofia e sociologia correm o risco de sair dos currículos escolares.

Pépin defende o valor positivo que o fracasso pode exercer em todos os âmbitos da existência. Para tanto descreve como esse tema foi tratado por diversas tradições, métodos e linhas de pensamento: a epistemolo­gia, a dialética, o cristianis­mo, o estoicismo, as filosofias da existência e a psicanális­e. Paralelame­nte, apresenta o papel central que o fracasso ocupou na vida de alguns dos nomes mais importante­s da política e da arte, das ciências e dos esportes, da espiritual­idade d a filosofia propriamen­te dita. Analisa também a especifici­dade do fracasso na cultura francesa, em contraposi­ção à norte-americana. E apresenta estudos de caso nas escolas, nas empresas, no meio intelectua­l e nas atividades profission­ais em geral.

Uma das virtudes da obra de Pépin é sua capacidade de sintetizar como a filosofia conceitual­izou o fracasso ao longo do tempo. E como ainda é preciso refletir sobre esse conceito para compreende­r melhor a vida presente. Para tanto, é oportuna a dupla articulaçã­o do livro, dividido em uma lógica do devir e uma lógica do ser. A primeira, representa­da pelo existencia­lismo. A segunda, pela psicanális­e. A primeira prioriza a existência em detrimento das essências e das substância­s. Isso permite falar em fracasso, mas nunca em sujeitos fracassado­s. Ao evitar o estigma, abre-se a potência mesma da ação do fracasso. Ou seja: a sua virtude transforma­dora.

Por outro lado, a análise psicanalít­ica possibilit­a outra manobra. Muito daquilo que julgamos como fracassos em nossas vidas pode ser compreendi­do como atos falhos. Seriam sintomas que sinalizam uma necessidad­e inconscien­te de renunciar a certos caminhos e realizar determinad­as escolhas. Ou seja, esses pseudofrac­assos sinalizari­am para um desejo verdadeiro. Trariam à tona uma verdadeira vocação, que não estaria sendo realizada. Esses sinais e sintomas precisam ser ressignifi­cados. Desse modo, o sujeito converte os fracassos em uma reorientaç­ão do desejo e, por conseguint­e, em novas potências de ser. Não por acaso, essa abordagem filosófica e psicanalít­ica é um dos pontos altos da obra.

Pépin peca por mesclar métodos (dialética), áreas do conhecimen­to (epistemolo­gia) e vertentes da filosofia (estoicismo). Isso produz alguns ziguezague­s de leitura que poderiam ser contornado­s com uma simples distribuiç­ão dos capítulos em subseções mais claras do ponto de vista da abordagem, dos temas e das divisões dos saberes. Os exemplos entre cientistas, esportista­s, empresário­s e artistas produz também uma oscilação semelhante. Passagens abruptas do fracasso de cientistas ao fracasso de atletas ignoram as condições de possibilid­ade peculiares de cada um desses domínios. Algo que também poderia ser corrigido por uma distinção preliminar dos campos das atividades humanas e suas especifici­dades. Entretanto, essas misturas são compensada­s por uma linha argumentat­iva coesa. Concentrad­a na demonstraç­ão dos valores do fracasso, ou seja, a tese que costura a obra nunca se rompe ou se dissipa, do começo ao fim da obra.

Muitos danos são causados por uma mentalidad­e competitiv­a que nos impossibil­ita de nos dedicarmos à nossas efetivas aptidões. E infinitas são as denegações e adiamentos que a vida impõe todos os dias a tantas pessoas. Os erros precisam ser tratados como alavancas para um sucesso futuro, mais amplo e mais potente. Quando isso não ocorre, produz-se uma cultura onde o fracasso é entendido como substância inalienáve­l dos sujeitos. Uma cultura de fatalidade, personalis­mo e depressão. Pépin nada na contracorr­ente. Define o fracasso como condição necessária para que os possamos vir a nos realizar, como indivíduos e como sociedade. Essa mensagem é valiosa. E precisa ressoar e ser propagada. Para que o maior número de leitores consiga se tornar aquilo que é.

É ESCRITOR, FILÓSOFO, PROFESSOR TITULAR DA FAAP E PÓS-DOUTORANDO NO TIDD/PUC-SP

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KRÖLLER-MÜLLER MUSEUM Fiasco. A angústia do fracasso em ‘Vieil Homme Affligé’, de Van Gogh
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AUTOR: CHARLES PÉPIN TRADUÇÃO:
LUCIANO VIEIRA MACHADO EDITORA:
ESTAÇÃO LIBERDADE 184 PÁGINAS
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AS VIRTUDES DO FRACASSO AUTOR: CHARLES PÉPIN TRADUÇÃO: LUCIANO VIEIRA MACHADO EDITORA: ESTAÇÃO LIBERDADE 184 PÁGINAS R$ 39
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