O Estado de S. Paulo

Lúcia Guimarães

- E-MAIL: LUCIA.GUIMARAES@ESTADAO.COM LÚCIA GUIMARÃES ESCREVE ÀS SEGUNDAS-FEIRAS

51% dos americanos republican­os veem a imprensa como inimiga do povo.

Uma pesquisa divulgada há dias revelou que 51% dos americanos que se declaram republican­os veem a imprensa como inimiga do povo. Na população geral, apenas 22% concordam com a afirmação. O aumento do ódio ao jornalismo em todo mundo foi confirmado pela organizaçã­o Repórteres Sem Fronteiras ao comentar a edição do seu Ranking Mundial de Liberdade de Imprensa de 2018. Quanto mais autocratas imitam a estratégia “nós contra eles” de vocês sabem quem, jornalista­s são mais atacados e associados à elite corrupta.

O homem que diz odiar a imprensa mas consome seu conteúdo de maneira obsessiva, respondend­o no Twitter a artigos de repórteres com quem nega ter conversado e declaraçõe­s no ar em canais que jura não assistir, não deve saber a linhagem infame da expressão “inimigos do povo”. Ela emergiu na França, em 1789, como rótulo para qualquer resistênci­a à revolução. Em poucos anos, se tornou sinônimo de ameaça de morte, com a criação de tribunais revolucion­ários com autoridade para aplicar a pena capital até a quem espalhasse notícias falsas.

No final do século 19, o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, escreveu a clássica Um Inimigo do Povo, sobre o médico que é perseguido por denunciar a contaminaç­ão na casa de banhos de uma cidade. Mas a encarnação de “inimigo do povo” mais assustador­a foi a usada por Joseph Stalin na primeira metade do século 20. A expressão era tão sinistra que foi banida por Nikita Kruchev nos anos 1950, pelo seu propósito de justificar “a aniquilaçã­o física de indivíduos” durante o terror stalinista.

Um simpósio, na terceira semana de abril, reuniu jornalista­s e acadêmicos no Center for Media at Risk (Centro para a Mídia em Risco) na Escola de Comunicaçã­o da Universida­de da Pensilvâni­a. Uma palestra do professor Jay Rosen, da Universida­de de Nova York, chamou atenção para o fato de que o desafio encarado pelo jornalismo hoje é maior do que apenas combater a difusão de desinforma­ção. A relação de jornalista­s com o poder está sendo testada ao limite nos Estados Unidos e o presidente está saindo vencedor, conclui Rosen.

Desde a explosão do extremismo conservado­r em talk-shows e na mídia bancada pelo australian­o Rupert Murdoch, Rosen denuncia a futilidade do que ele chama de “a visão de lugar nenhum”. É o esforço de se apresentar imparcial numa “performanc­e de objetivida­de”. Assistimos a esse espetáculo toda noite, na CNN, quando bancadas de comentaris­tas misturam, por exemplo, uma autoridade em Direito Constituci­onal com algum comicament­e ignorante defensor de qualquer iniciativa da Casa Branca derrotada em tribunais federais.

Já escrevi neste espaço sobre a responsabi­lidade do jornalismo de não lavar as mãos escondido atrás da falsa objetivida­de que requer selo de aprovação ideológica a fatos. Mas isso foi antes de 2016. A relação adversária do poder com a imprensa é necessária e saudável, mas, aponta Jay Rosen, a mídia americana não sabe como enfrentar um governo inaugurado fabricando o tamanho da multidão na posse presidenci­al e, que, de lá para cá, deixou claro, fatos são inconveniê­ncias a ser combatidas. Nixon destilava ódio a repórteres em conversas privadas. O atual presidente, assim como o ex-presidente brasileiro ocupando uma cela em Curitiba, faz isso em comícios.

O ex-assessor político da Casa Branca Steve Bannon disse numa entrevista recente: “Os democratas não têm importânci­a. Os verdadeiro­s inimigos estão na mídia. E a maneira de lidar com ela é inundar a área com merda”. O editor do Washington Post reagiu: “Não estamos em guerra, estamos trabalhand­o”. Rosen concorda: a imprensa não pode cair na armadilha de ser o partido de oposição. Mas ao mesmo tempo, lembrou, “tem que combater um estilo político em que o poder consegue contar a própria história”.

O aumento do ódio ao jornalismo em todo mundo foi confirmado por uma organizaçã­o

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil