O Estado de S. Paulo

Licitação de ônibus

- CLARISSE CUNHA LINKE DIRETORA EXECUTIVA DO ITDP BRASIL

Alicitação do serviço de ônibus da cidade de São Paulo é uma oportunida­de única de debater e determinar condições favoráveis para uma mobilidade mais inclusiva, de maior qualidade e mais sustentáve­l pelas próximas décadas. As mudanças propostas já trazem pontos positivos sobre o sistema atual, como a garantia de intervalos menores durante a semana, intervalos regulares à noite e no fim de semana e a previsão de uma frota de emissão zero de poluentes.

Mas será que os mecanismos previstos são suficiente­s? Como garantir que o sistema seja constantem­ente aprimorado durante a vigência dos novos contratos?

Para responder a essas perguntas o centro das atenções deve ser o modelo de remuneraçã­o das operadoras ganhadoras da licitação. Isto é, quais serão as regras para pagar às operadoras pelo serviço que cumpriram e pela qualidade que atingiram, ou, ao contrário, onerá-las pelo que deixaram de cumprir.

Nessa discussão, São Paulo certamente pode aprender com bem-sucedidas experiênci­as internacio­nais.

A licitação propõe uma importante transição no método de remuneraçã­o das empresas vencedoras. Hoje o cálculo é feito de acordo com a quantidade de passageiro­s transporta­dos: ganha quem consegue transporta­r mais passageiro­s com menos ônibus, o que ocasiona em muitos casos superlotaç­ão nos veículos. A remuneraçã­o passará a ser baseada nos custos do serviço: ganha quem realiza o serviço programado pela SPTrans. Além disso, a remuneraçã­o terá mecanismos de bonificaçã­o e penalizaçã­o baseados no atingiment­o de metas, que visam o incentivo à qualidade para o usuário e a redução de riscos – para evitar, por exemplo, que os ônibus não parem nos pontos.

A proposta é interessan­te, mas traz dúvidas. Por exemplo, da forma como está, a fiscalizaç­ão do cumpriment­o da programaçã­o da SPTrans será realizada a partir dos terminais. Seria mais efetivo realizá-la ao longo da linha, verificand­o em cada ponto a aderência ao horário programado, como é feito em Londres e Cingapura. Isso porque em São Paulo, enquanto 85% a 95% das viagens são realizadas, o cumpriment­o de horários e intervalos é baixíssimo, da ordem de 50% a 60%. Além disso, é preciso incorporar processos informatiz­ados a esse controle, até agora realizado em pranchetas de papel na rua, que pode passar a ser feito por meio de GPS, conforme disposto na concessão de ônibus de Santiago, no Chile. Em São Paulo essa tecnologia é utilizada somente aos sábados e domingos.

Outro ponto que deve ser observado com atenção se relaciona com os mecanismos de pressão à disposição dos usuários. O método de remuneraçã­o prevê um peso para a avaliação da satisfação dos usuários: quanto menor for a nota de satisfação, maior o desconto na remuneraçã­o. Porém, em simulações realizadas a partir de condições atuais do sistema, chega-se a um desconto baixo, entre 0,3% e 0,7% no total da remuneraçã­o, caso a nota de satisfação seja mínima. Este desconto será suficiente para determinar uma mudança concreta na tomada de decisão do operador?

Caso as operadoras não cumpram o combinado, estão previstas mais multas, que serão mais caras do que as existentes hoje em dia. Os recursos arrecadado­s poderiam ser utilizados para promover a melhoria do serviço. A concessão da Linha 1 do sistema de BRT Metrobús do México-DF prevê a existência de um Fundo de Sanções e Bonificaçõ­es que recebe todas as sanções emitidas. O fundo pode ser parcialmen­te acessado pelo operador que tenha cometido o menor número de infrações no fim de cada semestre, desde que respeitado um parâmetro mínimo de desempenho. Outra sugestão pode ser extraída da concessão do sistema de BRT Janmarg, em Ahmedabad, na Índia, em que há a possibilid­ade de bonificaçã­o caso o operador apresente um desempenho anual acima de 96% dos índices de desempenho obrigatóri­os e tenha sofrido multas abaixo de 3% de seu faturament­o no mesmo ano.

Por fim, uma questão que não poderia deixar de ser debatida: como se dá a mobilidade das mulheres e como os mecanismos de remuneraçã­o do edital podem estar atentos a isso? O setor de transporte é um dos que mais empregam nas cidades. Metas progressiv­as de paridade de gênero na composição dos recursos humanos das empresas operadoras seriam bem-vindas e garantiria­m bons resultados: motoristas mulheres são proporcion­almente responsáve­is por um número menor de infrações, mortes e atropelame­ntos no trânsito, além de ampliarem a sensação de segurança para outras mulheres – algo desejável para o transporte público de São Paulo, ambiente onde ocorrem em média quatro registros de assédio por semana. Em Buenos Aires, metas desse tipo foram estabeleci­das e campanhas para atrair mulheres para esses postos foram bem-sucedidas: na capital argentina, no ano de 2017, 65% dos candidatos às vagas de agente de tráfego eram mulheres e atualmente esse cargo tem cerca de 50% de mulheres empregadas.

Além disso, o método de remuneraçã­o poderia prever bônus para aplicações inovadoras de tecnologia­s, como equipament­os de “botão de pânico” que auxiliem na pronta resposta a ocorrência­s como abuso sexual, furto e roubo. No sistema de trólebus em Quito, no Equador, foi lançado o aplicativo Abaixo o Abuso, pelo qual as mulheres podem pedir ajuda em situações de risco dentro dos veículos. O sistema aciona os seguranças, que entram no veículo na estação seguinte.

O modelo de remuneraçã­o da nova concessão de ônibus de São Paulo é central para que as operadoras busquem uma melhoria contínua de seus serviços e aumentem a atrativida­de do sistema de ônibus. Inúmeras estratégia­s já foram testadas e validadas em diversas cidades no mundo. São Paulo tem agora a oportunida­de de se inspirar nessas experiênci­as e, assim, inspirar outras cidades brasileira­s.

O que a cidade de São Paulo pode aprender de experiênci­as internacio­nais

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil