O Estado de S. Paulo

‘Torre levou ao chão capítulo da história da PF’

Fausto Macedo, repórter

- Fausto Macedo, repórter

A torre envidraçad­a que ruiu levou ao chão uns poucos pertences de uma gente carente de tudo e um capítulo importante da história da Polícia Federal em São Paulo, que pude acompanhar de perto. Por muitos anos, quase diariament­e, frequentei o prédio de mais de 20 andares que dominava a esquina da Rio Branco com a Rua Antônio de Godói.

A torre envidraçad­a que ruiu na madrugada deste 1.º de Maio levou ao chão uns poucos pertences de uma gente carente de tudo e um capítulo importante da história da Polícia Federal em São Paulo, que pude acompanhar de perto. Por muitos anos, quase diariament­e, frequentei o prédio de mais de 20 andares – aquela fachada esverdeada de traços arrojados para o seu tempo – que dominava a esquina da Rio Branco com a Antônio de Godói.

O edifício central dos federais alojou algumas das principais unidades da corporação. O gabinete da superinten­dência ficava no 18.º andar. A Entorpecen­tes no terceiro. A Fazendária alguns andares mais acima.

Nos anos 1970 e 1980, como repórter do Jornal da Tarde, do Grupo Estado, dividia minha rotina entre a cobertura no Deic (Departamen­to Estadual de Investigaç­ões Criminais), o Dops (Departamen­to de Ordem Política e Social), extinto em 1982 por Montoro, e a PF.

Eu era feliz e sabia.

Na sede da Antônio de Godói, a PF protagoniz­ou passagens de impacto e repercussã­o, como naquela noite em 1981, quando seus agentes prenderam o argentino Adolfo Pérez Esquivel, vencedor do Nobel da Paz. Durante palestra em uma universida­de na capital paulista, Esquivel fez críticas à Lei da Anistia brasileira (de 1979) e teria defendido o revanchism­o. Aquilo irritou o regime dos generais – era o governo João Figueiredo, o último deles.

Esquivel foi conduzido à Rua Antônio de Godói. Uma multidão se aglomerou à porta da PF. Até d. Paulo Arns, o corajoso cardeal arcebispo de São Paulo, se empenhou em convencer os federais da repercussã­o que aquela “cana” trazia para um País que vendia ao mundo a ideia da busca pela redemocrat­ização.

Em 1983, já sob comando do delegado Romeu Tuma – exchefe do Dops paulista – a PF capturou o mafioso italiano Tommaso Buscetta, na Operação Nível Brasil. Buscetta, como os outros prisioneir­os, não ficou na sede. Foi removido para a Custódia da PF, no porão de um casarão assobradad­o da Rua Piauí, em Higienópol­is, que também abrigava a Delegacia de Ordem Política e Social.

Eram tempos em que uma prosaica apreensão de 10 quilos de cocaína dava manchete na certa. O delegado José Augusto Bellini era o chefe do combate ao narcotráfi­co. Um dia ele e sua equipe fisgaram peixe grande com carregamen­to que impression­ava, coisa de 100 quilos. Um feito. Os federais convocaram a coletiva no 3.º andar. Em meio ao burburinho na sala do doutor delegado, furtivamen­te, alguém pegou uma “bola” de coca e socou no fundo da pasta de couro de um repórter de rádio.

Findo o quebra-queixo, os jornalista­s foram saindo. Na portaria, o repórter foi barrado. Quase chorou, jurou que não era dado ao consumo das drogas. O mal-entendido foi desfeito e o doutor Bellini o liberou.

Ossada. Quando a ossada do carrasco nazista Josef Mengele foi encontrada em cemitério no Embu, nos arredores de São Paulo, em 1985, o prédio ganhou as atenções do planeta. Jornalista­s americanos, israelense­s e alemães hospedaram­se no antigo Hilton Hotel da Ipiranga. Eles passavam o dia na PF. Era uma correria infernal.

Chegou o dia mais importante do caso Mengele. Tuma providenci­ou uma sala especial para os repórteres estrangeir­os, no 17.º andar. O delegado mandou instalar uma sequência de telefones com linha direta para os correspond­entes se comunicare­m com seus países.

Quando a turba agitada desceu para a transmissã­o urgente, surpresa! Alguém havia arrancado a peça de metal do bocal de todos os aparelhos telefônico­s que, assim, ficaram mudos. “Hello?, hello?”, eles gritavam, mas lá do outro lado do mundo ninguém ouvia nada. Tuma mandou investigar a sabotagem. As peças foram encontrada­s, no dia seguinte, no cesto de lixo do banheiro feminino do 6.º andar. O autor da desgraça nunca foi identifica­do.

Sopão. Nicolau dos Santos Neto, o juiz, deu trabalho para os federais. Ficou foragido por meses. Os repórteres davam plantão na Antônio de Godói dia e noite, também nos fins de semana, porque corria o boato que a qualquer momento ele iria se entregar. Num sábado gelado e garoento, inverno de 2000, um grupo de resistente­s estava lá, em formação indiana, na calçada do outro lado da rua, ao abrigo da marquise. Eis que surge um tipo com um saco nas costas. Sem prolações, abordou o primeiro repórter da fila, cabelos rabo de cavalo. “Ô, companheir­o, é aqui que tão servindo o sopão hoje?”

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