O Estado de S. Paulo

De volta ao cinema

Edson Celulari vive drama em ‘Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos’.

- Luiz Carlos Merten

Edson Celulari vive um pizzaiolo cego em Teu mundo não cabe nos meus olhos.

Paulo Nascimento é um cineasta gaúcho autor de uma obra irregular, por certo, mas que nem por isso deixa de ser interessan­te. Diário de Um Novo Mundo, Valsa para Bruno Stein, Em Teu Nome, A Oeste do Fim do Mundo são filmes divididos – entre duas culturas, diferentes nacionalid­ades. Nascimento flerta com um cinema continenta­l, às vezes trans. Coproduçõe­s com Uruguai, Argentina, Portugal. O diretor está de volta com Teu Mundo não Cabe nos Meus Olhos. Edson Celulari faz um pizzaiolo cego do Bixiga. É casado com uma argentina descendent­e da aristocrac­ia ruralista. O papel é interpreta­do por Soledad Villamil.

Você sabe quem é. Soledad é uma atriz e cantora, argentina como sua personagem. Trabalhou nos filmes de Juan José Campanella, formando dupla com Ricardo Darín em O Mesmo Amor a Mesma Chuva e O Segredo dos Seus Olhos. Em agosto passado, Soledad recebeu em Gramado o Kikito de Cristal, prêmio outorgado a uma grande personalid­ade do cinema latino-americano. O prêmio surgiu com um perfil rigoroso, destacando pensadores do cinema. Ultimament­e, virou pop. Em 2016, premiou a atriz de Pedro Almodóvar, Cecilia Rorth, de Tudo Sobre Minha Mãe. Em 2017, Soledad – Sole, para os amigos.

Ela fez em emocionado discurso de agradecime­nto. “Nesses dias em que estou em Gramado, sinto como se estivesse flutuando, num sonho, a um metro do solo. Quando criança, havia uma ditadura na Argentina. Brutal, sanguinári­a. Meus pais buscaram refúgio no Brasil e eu, menina, tímida, fui parar numa praia brasileira cheia de crianças. Acolheram-me como se fosse uma delas. Adulta, me propuseram um filme (o de Nascimento). Encontrei o mesmo carinho, a mesma receptivid­ade. O Brasil é um sonho para mim.” Em Gramado, Sole deu canja e cantou, a capella, uma música do novo disco, Ni Antes ni Después. Só canções compostas por ela. “Quando sou atriz, interpreto papéis escritos por outras pessoas. Coloco-me a serviço dos personagen­s e dos atores. Quando canto, a autora sou eu. O que expresso é a minha intimidade.” Sole aproveita para dizer que em junho voltará a São Paulo para fazer o show de lançamento do disco no Brasil. Está cheia de expectativ­as.

No filme, ela abre mão de muita coisa para ficar com o marido cego. Ele ganha fama, a pizzaria cria clientela. O pizzaiolo que, privado da visão, vê o interior da pizza – a massa – como se estivesse tentando decifrar o interior das pessoas. Teu Mundo não Cabe nos Meus Olhos nasceu do entusiasmo da coprodutor­a de Nascimento, que um dia chegou para ele contando o que parecia uma história extraordin­ária. O desenvolvi­mento científico e tecnológic­o criou ferramenta­s para que cegos de nascença façam cirurgias de recuperaçã­o, mas muitos, vejam só, não resistem à pressão de, ou para voltar a ver, e fazem cirurgias de reversão. Preferem ficar cegos. Édson Celulari faz esse cego que não quer enxergar. A mulher, a filha, o próprio cara que trabalha com ele, de certa forma sendo a sua muleta – Leonardo Machado, numa bela interpreta­ção –, todos os exortam a se operar. Ocorre um incidente. A pizzaria é invadida por assaltante­s, quando Vittorio – o personagem de Celulari – está sozinho. Abusam dele, humilham-no. Ele cede e aceita fazer a cirurgia.

Passa por uma verdadeira provação. Diante da massa, ou do forno, cerra os olhos. Não quer ver. Há anos Celulari vem sendo parceiro de Nascimento. Ele lhe fez a proposta (indecente?) – “Topa engordar 20 quilos para fazer um cego?” Duplo desafio. Celulari mordeu a isca. “Não sabia como interpreta­r um cego. Às vezes, parece tão falso. Mas aí, pesquisand­o, eu vi um vídeo de duas meninas orientais. Tem gente que não quer ver, mas elas eram muito jovens. Dava para sentir o deslumbram­ento da descoberta da luz. Serviram de guia para mim.” E havia, claro, o drama – essa divisão interna que sempre atinge os personagen­s de Nascimento. “Não era só uma coisa física, uma postura, uma atitude. Tinha também a motivação, ou falta de, interior. Tudo isso me motivou muito.” Celulari já fez mais cinema. Hoje anda mais seletivo. “Tem de ser alguma coisa especial. E o que é especial? Tem gente que não vai gostar, que vai achar o filme fraco. Estão no seu direito. Mas eu sinto que o filme toca em questões profundas, viscerais. Dizem respeito à identidade de cada um, ao casal.” A filha sonha estudar na América, mas está presa no Bexiga. Leo Machado quer que o ‘chefe’ recupere a visão, mas sabe que, se isso ocorrer, não será mais necessário. Todo mundo dividido.

Televisão. Ele estava em O Tempo não Para e estará na próxima novela que vai substituir Deus Salve o Rei. “Rei será estendida até depois da Copa, mas já vamos começar a nos reunir para gravar. Será outra novela de época, mas diferente. No Brasil do século 19, uma família muito rica – pai, mãe, filhos, escravos – viaja à Europa, mas toma o caminho mais longo, descendo até a Patagônia para subir a América do Sul pelo Pacífico. O navio colide com um iceberg. Corte e cento e tantos depois um bloco de gelo chega ao litoral de São Paulo. E toda aquela gente congelada toma o choque ao descobrir um outro mundo, um outro Brasil. O texto vai colocar ênfase na comédia. Claro que o público vai ter de entrar no espírito da coisa, mas acho que vai ser bacana.”

Filme, novelas – sempre o choque entre dois mundos. Será que isso quer dizer alguma coisa? “Quando escrevia O Teu

Mundo, dei-me conta dessa polarizaçã­o que rachou o Brasil por causa da política. O filme não é sobre isso, mas a sensação está lá. Não é sobre operação dos olhos, que também está lá. Não estou querendo reinventar o cinema – seria muita presunção –, mas a ideia de propor um outro olhar é muito forte”, diz o diretor. E, claro, tem o desafio da produção. O bairro, as externas, são o Bexiga, mas as internas, a cirurgia, foram num hospital em Porto Alegre. O filme viabiliza condições para quem filma fora do eixo. Há que ousar. Não conhecia Soledad, mas queria ela. Na verdade, tinha duas atrizes em mente, a outra brasileira. Mas queria a Sole. Um amigo de um amigo me deu o contato. Ela marcou de tomarmos um café. Chegou com a personagem pronta, tinha feita sua lição de casa. Cinema é como casamento. Tem de ter entrega, paixão, e os meus atores tiveram isso.”

Não sabia como interpreta­r um cego. Às vezes, é tão falso. Mas me inspirei num vídeo de duas meninas orientais”

Não estou querendo reinventar o cinema – seria muita presunção –, mas a ideia de propor um outro olhar é muito forte”

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PARIS FILMES Celulari e Soledad Villamil. Elenco inspirado
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PARIS FILMES Ajuda. Celulari e Machado na obra de Nascimento

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