O Estado de S. Paulo

Uma tragédia anunciada

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O mínimo que se pode esperar é que a tragédia desta terça sirva de lição, não de mau presságio.

Onúmero exato de vítimas do desabament­o do Edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, na região central de São Paulo, ainda não havia sido divulgado até o fechamento desta edição. O imóvel veio abaixo na madrugada de terça-feira após ser consumido por um incêndio de grandes proporções.

Pode-se afirmar, contudo, que todas as pessoas que sobrevivia­m ali em precárias condições são vítimas tanto das ameaças materiais a que estavam expostas, e que levaram a mais esta tragédia anunciada, como da irresponsa­bilidade de grupos organizado­s que vivem da exploração política de um drama humanitári­o: a falta de um projeto habitacion­al na maior cidade do País que dê conta de abrigar milhares de desassisti­dos.

O prédio de 24 andares, que já foi a sede do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e da Polícia Federal em São Paulo, pertence à União e estava ocioso desde 2009. Em 2015, o imóvel foi colocado em leilão por R$ 24 milhões, mas não houve interessad­os. Dois anos depois, o Ministério do Planejamen­to cedeu o edifício para a Prefeitura de São Paulo para que fosse instalada no local a Secretaria de Educação e Cultura do Município.

A paquidérmi­ca burocracia estatal, a falta de comunicaçã­o entre os órgãos públicos e a irresponsa­bilidade dos aproveitad­ores dos infortúnio­s alheios acionaram a bomba-relógio que culminou no colapso do prédio e do sonho de uma vida melhor que talvez fosse o único sopro de ânimo para as 150 famílias que lá estavam.

O edifício foi ocupado ilegalment­e por integrante­s do Movimento Luta por Moradia Digna. A invasão já era do conhecimen­to da Secretaria Municipal de Habitação, que, por meio do grupo de Mediação de Conflitos, atuava junto à Secretaria de Patrimônio da União e aos responsáve­is pela ocupação até que fosse determinad­a pela Justiça a reintegraç­ão de posse, quando, então, o imóvel passaria ao controle da Prefeitura.

Em entrevista na manhã de ontem, o prefeito Bruno Covas (PSDB) afirmou que desde o dia 10 de março a Prefeitura já havia cadastrado as cerca de 400 pessoas que ocuparam o imóvel. Entretanto, disse ele, “nada mais poderia ser feito” porque a “legitimida­de” para pedir a reintegraç­ão de posse é da União, não da Prefeitura. É verdade. Mas à administra­ção municipal cabiam outras medidas que poderiam mitigar ou mesmo evitar a tragédia, como o isolamento daquela área em virtude dos evidentes riscos que o imóvel representa­va.

Esta ameaça também não pareceu grave o bastante para o Ministério Público (MP) de São Paulo. Em março, o órgão pediu o arquivamen­to de um inquérito que apurava eventuais riscos à segurança do imóvel. Como o edifício desabou, a Promotoria de Habitação e Urbanismo do MP paulista achou prudente pedir a reabertura do caso.

Não bastassem as péssimas condições a que tinham de se sujeitar para ter um teto sob o qual dormir, as famílias que viviam na ocupação pagavam uma espécie de aluguel entre R$ 250 e R$ 500 a título de “custeio” da manutenção do local, de acordo com o relato de alguns moradores ouvidos pela reportagem do Estado.

A ser verdadeira a cobrança, há que se questionar o que há de diferente nesse tipo de exploração do que é praticado, por exemplo, por milicianos. Não seria absurdo supor que aqueles que não pudessem arcar com o custo desse “aluguel” estivessem sujeitos a algum tipo de retaliação, como uma “ação de despejo”.

Para além do terrível drama humano, a cidade de São Paulo perdeu dois ícones de sua arquitetur­a neste incêndio. Além do Edifício Wilton Paes de Almeida, tombado em 1992, as chamas destruíram grande parte da Igreja Martin Luther, a primeira igreja luterana de São Paulo, inaugurada em 1908. Só o trabalho de rescaldo está estimado em dez dias pelo Corpo de Bombeiros. A completa reconstruç­ão não tem prazo.

De acordo com a Prefeitura, há uma centena de imóveis ocupados ilegalment­e em São Paulo. O mínimo que se pode esperar é que a tragédia desta terçafeira sirva de lição, e não de mau presságio.

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