O Estado de S. Paulo

Orgulho e preconceit­o

- MONICA DE BOLLE E-MAIL: MONICA.DEBOLLE@GMAIL.COM MONICA DE BOLLE ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS ECONOMISTA, PESQUISADO­RA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIO­NAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

Aintenção não era intitular esse artigo à la Jane Austen, mas sim “Ignorância, Orgulho e Preconceit­o” que, infelizmen­te, não cabe nos limites do jornal. A ignorância reflete a absoluta falta de conhecimen­to a respeito da relevância de problema por mim já discutido nesse espaço: o hiato salarial persistent­e entre homens e mulheres no mundo, e no Brasil em particular. A esse respeito, já fui interpelad­a com argumentos que vão desde “quanta decepção ao ver você exaltar a vitimizaçã­o da mulher” até “o Brasil tem tantos outros problemas mais importante­s do que esse”.

O orgulho está nas propostas de alguns presidenci­áveis, que consideram esse tema pouco importante ou irrelevant­e. Para esses, educar-se com fatos e evidências sobre o assunto não interessa, o que importa são bordões e platitudes. Por fim, o preconceit­o. Sobre isso, prefiro nada dizer. Basta ler os comentário­s das redes sociais toda vez que o tema é levantado em alguma discussão.

Mas quero retornar à ignorância. É estupendo – no pior sentido – que tanta gente não tenha a menor ideia do custo para a economia e para o desenvolvi­mento de um país provenient­e da disparidad­e salarial. De acordo com relatório de 2017 da ONU, controlado­s diferencia­is de produtivid­ade, qualificaç­ão acadêmica, atividade profission­al, idade, licença-maternidad­e, entre outros fatores, mulheres recebem remuneraçã­o 23% menor do que homens – ou elas ganham 77% dos salários deles. O Brasil está exatamente na média global, segundo estudos: mulheres recebem 77% dos salários dos homens. Visto de outro modo, uma mulher com a mesma qualificaç­ão, educação e produtivid­ade do que um homem teria de trabalhar 16 meses para receber a mesma remuneraçã­o que eles ganham em doze. Por que isso interessa? Há vários estudos – do FMI, do Banco Mundial, da OCDE – mostrando que quanto menor a diferença de salários das mulheres e maior a participaç­ão feminina no mercado de trabalho, maiores as taxas de cresciment­o do PIB. Há estudos também mostrando que a inclusão feminina no mercado de trabalho e a facilitaçã­o do acesso ao crédito têm consequênc­ias distributi­vas relevantes, além de efeitos sobre a redução da pobreza. Portanto, políticas públicas voltadas para a redução do hiato salarial poderiam ajudar a resolver diversos graves problemas brasileiro­s. E as políticas públicas funcionam, para a surpresa de alguns de nossos presidenci­áveis.

Em países como o Reino Unido, Chile, Portugal, Áustria, Dinamarca, Suécia, Espanha, Bélgica, entre outros, uma das políticas implantada­s foi bem simples: requerer das empresas a transparên­cia sobre os salários pagos por gênero para cada ocupação. Há documentaç­ão empírica revelando que a divulgação pública de como as empresas remuneram seus funcionári­os por ocupação e gênero criou incentivo para a redução de disparidad­es, sem a necessidad­e de maiores intervençõ­es. Infelizmen­te, ao batalhão de desinforma­dos sobre esse tema, prevalece a ideia de que quem fala em disparidad­e de gêneros no fundo quer a imposição de cotas para mulheres. No universo das políticas públicas, há muito mais entre o céu e a terra do que a simples adoção de cotas. Há medidas para reduzir a falta de informação, há políticas que introduzam no orçamento público gastos relativos às necessidad­es específica­s das mulheres, como a provisão

No universo das políticas públicas, há muito mais entre o céu e a terra do que a simples adoção de cotas

de créditos para aposentado­ria de quem precisa se ausentar do mercado de trabalho por um tempo para cuidar dos filhos. Aliás, no Brasil em que ainda não houve reforma da Previdênci­a, mas onde essa deve ser a prioridade do próximo governo, urge tratar desse tema em qualquer proposta que venha a ser elaborada.

A ideia de que políticas públicas em determinad­as áreas tenham necessaria­mente de ser vistas como interferên­cias indevidas do Estado não poderia ser mais equivocada, distante da realidade, ou mesmo daquilo que tão bem sabem os economista­s preocupado­s com os fatos e as evidências: o mercado é um excelente mecanismo alocativo, mas muitas vezes ele falha. Quando falha, cabe ao governo prover os incentivos para resolver a falha. Isso nada tem de intervenci­onismo penoso, ou qualquer outro vício ideológico que passou a dominar crescentem­ente o debate político brasileiro.

Espero que o tema faça parte da pauta de debates da eleições. É demasiado importante para que fique relegado à ignorância, ao orgulho e ao preconceit­o.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil