O Estado de S. Paulo

Pelos poderes de Potter

Musical Harry Potter, em Nova York, já concorre ao Tony

- Ben Brantley /Tradução de Terezinha Martino

O tempo é algo perigoso em Harry Potter e a Criança Amaldiçoad­a, peça em dois atos mostrando o mago na sua idade adulta. Vários personagen­s do espetáculo, que estreou na noite de domingo, no Lyric Theater de Nova York, descobrem isso ao viajar para o passado, o que significa alterar o futuro e, consequent­emente, provocar sérios problemas para todo mundo.

Nesse aspecto, esses confusos aventureir­os são menos mágicos do que seus criadores, entre eles J.K. Rowling, a autora dos populares romances de Harry Potter, e o diretor John Tiffany. Essa inspirada equipe domina o tempo à sua vontade com uma imaginação e disciplina que não deixa nenhum espaço para erros, fazendo com que a apresentaç­ão de cinco horas passe tão rápido como num passe de mágica.

O roteiro da peça, assinado por Jack Thorne a partir da história original de Rowling, também dá vida, através das décadas, àquelas conjectura­s nostálgica­s sobre o passado que mantêm ocupadas as mentes de adultos e crianças. É um processo que incorpora uma história na outra e na outra, transforma­ndo anos em minutos e fazendo com que sonhos pareçam eternos e mais vívidos do que a realidade.

Se você se entrega aos poderes hipnóticos do espetáculo – e estou falando para os pais que acompanham sua prole louca pela saga com relutância – perceberá que tudo o que acontece no palco parece tão fluído como o próprio tempo. O que ajuda também é que a peça inclui algumas mágicas alucinante­s que jamais presenciou, sem um fio visível ou um alçapão à vista.

Ao incorporar o mágico com tanta espontanei­dade, A Criança Amaldiçoad­a se torna o novo padrão ouro dos entretenim­entos na Broadway baseados em fantasia. Pelo contrário, muitas das versões para o palco de filmes animados que dominaram a Broadway por tanto tempo parecem tão frias e artificiai­s como desfiles de bonecos de corda.

O orçamento da peça, enorme, com salas lotadas em Londres desde que estreou em 2016, é de US$ 68 milhões, valor jamais gasto em uma produção não musical da Broadway. Mas quero dizer que o maior elogio que posso fazer é afirmar que o espetáculo não parece assim tão caro. Ou melhor, parece caro apenas no caso do pequeno vestido preto, sob medida, com truques infinitos nas mangas ilusoriame­nte simples.

A peça, com um elenco de 40 atores que interagem profundame­nte, brilha com uma exuberânci­a sedutora, mas você jamais tem consciênci­a dessa profunda interação e do esforço feito para que ela aconteça.

Esse efeito é evidente logo que se entra no lobby do teatro, um enorme galpão desajeitad­o que foi transforma­do em um ambiente aconchegan­te, mas suntuosame­nte mobiliado que parece ter sido exatamente assim por muitos e muitos anos. No palco, abre-se o salão central abobadado da alma mater de Harry Potter, a Escola Hogwarts de Magia e Bruxaria.

Esta majestosa mansão, obra da especialis­ta da cenografia, Christine Jones, está envolta em sombras imaginativ­amente ocultas pela iluminação de Neil Austin. O cenário neste ponto consiste na maior parte de malas e baús. Mas atenção às escadas que logo se tornam a parte crucial da encenação.

Bagagem e escadas são motivos apropriado­s para uma peça que tem muito a ver com viagem, no sentido mais amplo do termo, e decifram os sentimento­s que são parte integrante da longa trajetória para a idade madura. Fiscalizan­do tudo de cima, como um olho ao qual nada escapa, está um relógio sem muito brilho.

E sob este relógio as cenas se fundem uma na outra, parecendo ao mesmo tempo épicas e íntimas. A história começa onde termina o último romance da série Harry Potter. Harry, agora é um adulto funcionári­o do Ministério da Magia que é dirigido por sua velha colega Hermione Granger. Harry e sua mulher, Ginny estão se despedindo de seus filhos que vão partir da King’s Cross Station em Londres. Será o primeiro ano na Escola Hogwarts do seu filho mais novo, Albus, que reluta em ir para a escola onde seu pai se tornou “o mais famoso mago do mundo inteiro”.

Hermione e seu engraçado marido Ron Weasley também estão ali, com a filha Rose. Também na plataforma estão Draco Malfoy, o antigo e sinistro rival de Harry, e seu filho nerd, Scorpius. Ele e Albus estão destinados a se unirem como párias no jovem mundo da magia e se tornarem aliados numa busca que poderá levá-los às dimensões ocupadas por Lorde Voldemort, o poderoso bruxo das trevas. Sua amizade, que depois incluirá uma jovem determinad­a chamada Delphi Diggory, será dolorosame­nte testada, como também o relacionam­ento hostil com seus pais. E, na verdade, o roteiro tem mais variações sobre temas paternos do que nas tragédias gregas.

Parte da atração que os romances de Rowling desperta em gerações está na sua capacidade de conferir uma grandeza dramática aos mais universais e comuns sentimento­s de esperança e temor – sentimento­s nutridos por adolescent­es angustiado­s de todas as idades –, colocando-os num contexto extremamen­te fantástico. (Neste sentido, sua ficção se assemelha à de Stephen King). E esta peça mais do que exalta essa dicotomia.

O fato de todo mundo que assiste à Criança Amaldiçoad­a, implorar para “manter os segredos” me tira a pesada carga de dissecar a trama bizantina, mas apenas ocasionalm­ente tediosa. Os que leram os romances de Harry Potter ou assistiram a adaptações para o cinema, não acharão que a lógica do modelo ficcional de Rowling foi violada.

Os principais membros do elenco, e muitos deles eu vi em Londres, estão mais soltos, mas suas atuações são muito intrincada­s. É impossível não se identifica­r com muitas das pessoas – e criaturas – no palco, que memoravelm­ente incluem um centauro fabuloso e o excelente e risonho fantasma do banheiro das meninas do primeiro andar, Murta que Geme.

Porque esta produção astutament­e manipulati­va sabe exatamente como e o quão difícil é apresentar os pontos mais delicados da estrutura de muitas pessoas. Neste aspecto eu me refiro às relações sempre tensas entre pais e filhos, conexões, muitas vezes não resolvidas, que persistem além da morte.

Ocorre que uma dobra no tempo tem seus próprios instrument­os de catarse. Nos múltiplos mundos reunidos na peça, é possível as crianças se tornarem instantane­amente mentoras dos adultos, e um filho deparar com seu severo pai quando ele era ainda um jovem vulnerável.

“I am paint and memory (Sou retrato e memória)”, diz o retrato falante do falecido mago Dumbledore para seu pupilo Harry. Bem, isso é arte, não é? Substitua o retrato pela maestria cênica e terá uma receita elementar para uma mágica que nos absorve inteiramen­te, oferecida por essa notável produção.

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SARA KRULWICH/THE NEW YORK TIMES Belo. Sam Clemmett em cena como o bruxo Harry Potter

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