Estante sem livros
Biblioteca da Massa Madre, na Bélgica, só tem fermentos.
É uma sala com pouco mais de 50 metros quadrados, repleta de refrigeradores regulados a 2°C e fechados com portas de vidro. Dentro deles, frascos e frascos – até o momento, 105. São guardados como um tesouro vivo, que precisa ser alimentado a cada dois meses. Neste curioso museu, único em todo o mundo, o acervo é formado por exemplares de massa madre (ou pé de massa), como é chamado o fermento natural no jargão das padarias.
A Biblioteca da Massa Madre – ou Sourdough Library – é um espaço sem fins lucrativos mantido pela empresa Puratos em Sankt Vith, a 141 quilômetros de Bruxelas, na Bélgica. O museu não é aberto ao público. Para entrar ali, é preciso ser convidado, como foi o caso do Paladar.
Criada em 2013, esta reserva técnica da fermentação natural tem a função de ser um catálogo da arte ancestral de fazer o pão, revivida hoje pelas mãos de tantos padeiros, amadores e profissionais, e reavivada por meio de comunidades na internet.
“Vamos continuar ampliando nosso acervo com muito critério”, afirma o padeiro Karl De Smedt, um dos idealizadores do museu. “Nossa principal preocupação é saber se a massa em questão contribui para a biodiversidade. A biblioteca serve para manter a herança e a tradição. Nela está guardado o conhecimento oriundo de diferentes partes do mundo”, diz.
Até agora, o acervo é mais fortemente europeu – conta com 37 fermentos italianos, dois gregos, três húngaros, entre outros. Mas já há exemplares de Estados Unidos, Japão, além de quatro brasileiros (leia abaixo).
Coleta. Uma vez escolhido o fermento, seu dono é convidado a ceder uma amostra. Não há contrato, apenas um acordo. A empresa se compromete a não usar o material para fins comerciais. O dono da massa se compromete a enviar, anualmente, a farinha que usa para alimentar o fermento em seu estabelecimento. A massa madre é coletada em uma caixa térmica e em menos de 72 horas estará acondicionada no museu.
Uma equipe de cientistas da Universidade de Bari, no sul da Itália, liderada pelo microbiologista Marco Gobetti, analisa minuciosamente a composição de cada fermento. Já identificaram, ao todo, mais de 700 tipos de fermentos e 1,5 mil tipos de ácidos lácticos e bactérias.
A iniciativa é bem vista por estudiosos do assunto. Especialista em Marketing Agroalimentar e pesquisador da Universidade Livre de Bolzano, no norte da Itália, Mikael Linder celebra a riqueza do banco de dados. “O padrão industrial homogeneiza tudo em prol de velocidade e dinheiro. O artesanal revela a diversidade.”
Autor de Pão Nosso (SenacPanelinha), o jornalista Luiz Américo Camargo acredita que um espaço como este contribui para a promoção da cultura do pão, e da fermentação natural. “É um jeito de valorizar o tema, de fomentar a discussão, a produção de conteúdo”, diz. Mas adverte: “Se os fermentos vão se manter ‘típicos’, tal como eram em sua origem, é outra história. Mas, no mínimo, concentra-se mais conhecimento sobre a fermentação natural”.