O Estado de S. Paulo

Marx e Armênio, três séculos em maio!

- EROS ROBERTO GRAU ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDA­DE DE SÃO PAULO (USP), FOI MINISTRO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF)

Eis de repente, aqui, o mês de maio e suas rosas. A uma delas – qual na canção de Custódio Mesquita e Evaldo Ruy – ofereço meu coração. Ouço essa canção, agora, numa velha vitrola de discos de 78 rotações, lembrando-me de dois amigos.

Ao me aproximar dos 80 anos – chegarei lá? –, dúvidas tomam conta de mim e o esquecimen­to, uma coisa terrível, me comove. Não que não me lembre disto ou daquilo, não. O esquecimen­to dos outros e pelos outros é que me entristece.

No dia 27 de fevereiro passado participei de um debate organizado pelo Estadão cujo tema era “Modernizar a Constituiç­ão”. Ali pelas tantas, citei um trecho escrito por alguém no século 19: “Em um determinad­o estado do seu desenvolvi­mento, as forças materiais produtivas da sociedade entram em contradiçã­o com as relações de produção existentes ou – o que não constitui senão uma expressão jurídica delas – com as relações de propriedad­e no seio das quais vinham se movendo até então. De formas de desenvolvi­mento das forças produtivas que eram, essas relações se tornam entraves delas. Inicia-se então uma época de revolução social. A transforma­ção da base econômica altera mais ou menos rapidament­e toda a enorme superestru­tura”.

O auditório estava completo, cheio de gente atenta a escutar-nos, mas apenas duas pessoas se deram conta de que eu acabara de ler algumas linhas escritas por um velho alemão, o camarada Karl Marx, no prólogo da Contribuiç­ão à Crítica da Economia Política!

A vida é maravilhos­a, porém de repente tudo se vai. Como diz o Álvaro de Campos, vulgo Fernando Pessoa, depois que nos formos só seremos lembrados em duas datas, aniversari­amente: quando fizer anos que nascemos e quando fizer anos que morremos; mais nada, mais nada, absolutame­nte mais nada.

Um nasceu cem anos depois do outro. Os dois completari­am, lado a lado, 300 anos neste mês em que estamos. Marx e meu amigo que se foi em março de 2015, o camarada Armênio Guedes. Tenho agora em minhas mãos os textos de um livro a ser publicado em homenagem ao centenário do Armênio, 33, escritos por amigos seus de verdade.

Armênio nasceu no dia 30 de maio de 1918, em Mucugê, na Bahia. O velho Marx, no dia 5 de maio de 1818, em Tréveris, na Alemanha. Estive seguidamen­te com os dois.

Ao alemão fui apresentad­o por meu pai – que também nasceu em maio, no dia 9, em 1916 – quando tinha 15 anos. Entregou-me um livro de Marx – não me recordo se o Manifesto ou outro –, recomendan­dome que o lesse com atenção. Em 1955 a televisão e a internet ainda não existiam como instrument­os do modo de produção social que está por aí. Os jovens liam, alguns também escreviam.

Do Armênio aproximei-me nos anos 1980. Quando ele se foi, escrevi um pequeno texto no qual afirmei que lá se fora o Júlio, o Tio, como o chamavam seus companheir­os de exílio – Cecília, sua mulher, minha amiga, passou a vida toda chamando-o de Júlio!

Afirmei então que naquele momento era como se eu corresse os olhos, dominando o tempo, por inúmeros instantes do passado. Em Paris, em minha casa em Tiradentes (MG), em São Paulo. Armênio ensinando o futuro a minha filha. A mim recomendan­do prudência, mais de uma vez.

Lá se fora o amigo mais sereno. Seu olhar desdobrava esperança, paz. Revolucion­ar o mundo, construir a fraternida­de, mas em paz, harmonia e paz. Alguns amigos em volta do seu corpo, de repente o chão se abrindo para que a matéria fosse levada para sempre. Antes, durante breves instantes, confratern­izamos. Estivemos mais próximos do que nunca, entre nós e a ele. Uns foram capazes de dizer algumas palavras. Faltaram-me forças para mencionar o quanto o meu velho camarada me ensinara, para ao menos sussurrar a palavra amizade. Alguém trouxera, para ser reproduzid­a, a gravação de uma canção que, naquele verso – nesta luta final –, ressoa em nossos corações.

Lá se fora o corpo de Armênio. A esperança refletida no fundo de seus olhos serenos restava, no entanto, entre nós. Iluminando os caminhos a serem experiment­ados pelos que ainda lá estavam. Um dia por certo nos reencontra­remos na cidade de férias, férias boas que não acabam mais.

Tenho estórias e histórias a contar de nossas conversas, do Tio corrigindo e emendando artiguinho­s que escrevi para serem publicados na Gazeta Mercantil e de minhas confidênci­as de irmão. Durante o tempo todo em que exerci a magistratu­ra, seu olhar, iluminado pela phrónesis de Aristótele­s, me inspirou. Nada de ciência, prudência. Armênio iluminou o voto que proferi, como relator, no processo em que se discutia amplitude da anistia. Conversamo­s muito, longamente, foi ele que me conduziu em direção ao correto. Curiosamen­te, sempre o tive como um irmão, embora ele e meu pai tivessem nascido em 1916 e em 1918, nos meses de maio de então.

Com Marx estive também, em tudo quanto li do que escreveu. Guardo ao lado dos meus livros, cá em Tiradentes – onde estou agora a escrever – fotos desses meus dois amigos de verdade.

Como o espaço que aqui me resta é pequeno, basta-me repetir uma lição do então jovem Marx – quando a escreveu – a respeito do Direito e das leis: “A lei é universal; o caso que deve ser decidido através da lei é individual; para submeter o individual ao universal é necessário um julgamento; o julgamento é problemáti­co; o juiz também faz parte da lei; se as leis fossem aplicadas por si mesmas, os tribunais seriam supérfluos”.

Se me perguntare­m o que me une aos dois, direi que é a Amizade. Nós a cultivarem­os em algum lugar do Espaço, para sempre.

Se me perguntare­m o que me une aos dois, direi que é a Amizade

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil