O Estado de S. Paulo

Inseguranç­a tributária

- EVERARDO MACIEL CONSULTOR TRIBUTÁRIO, FOI SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL (1995-2002)

Um traço dominante da cena atual brasileira é, sem dúvida, a inseguranç­a, que se revela de inúmeras formas, desde o desrespeit­o à propriedad­e e aos contratos até a dramática violência urbana, promovida pelo crime organizado e pelas milícias.

Nesse contexto, desponta a inseguranç­a jurídica, com grande potencial para minar os valores básicos que regem a vida em sociedade.

No âmbito tributário, segurança jurídica é fator crucial para os investimen­tos.

Processos morosos e com elevado grau de imprevisib­ilidade, conceitos excessivam­ente indetermin­ados e interpreta­ções ciclotímic­as afugentam investidor­es e criam um clima hostil aos negócios.

As decisões judiciais sobre a natureza da substituiç­ão tributária constituem um bom exemplo de ciclotimia interpreta­tiva.

Utilizada desde os anos 1970, ainda que de início restrita a um pequeno número de produtos e com nítido propósito de combater a evasão fiscal, a substituiç­ão tributária foi incluída na Constituiç­ão pela Emenda n.º 3, de 1993.

A inclusão justamente no âmbito das limitações do poder de tributar, tratadas no artigo 150 da Constituiç­ão, revela claramente uma pretensão de restringir o uso do instituto. Não foi, entretanto, o que ocorreu.

Logo após a promulgaçã­o daquela emenda, houve um aumento exponencia­l de uso da substituiç­ão tributária. Não raro foi utilizada com flagrantes extravagân­cias, especialme­nte no que concerne à fixação das margens de valor agregado e abrangênci­a dos produtos.

Instado a examinar a matéria, o STF adotou, por incrível que pareça, entendimen­tos completame­nte antagônico­s.

A balbúrdia interpreta­tiva torna, inclusive, duvidosa a jurisprudê­ncia prevalecen­te, que pode, a qualquer tempo, ser revertida, em virtude, por exemplo, de uma nova composição da Corte.

Esse fato, em boa medida, se explica pela descomunal extensão da matéria tributária constituci­onal, que gera espaço para uma miríade de questionam­entos, sobretudo quando se considera a nossa irresistív­el vocação para litigar, traduzida nos 80 milhões de processos em curso no Judiciário brasileiro.

No caso específico da substituiç­ão tributária, mais adequado teria sido discipliná-la no Código Tributário Nacional (CTN).

Vivemos, assim, um paradoxo: excesso de normas constituci­onais e carência de normas infraconst­itucionais.

Em recente colóquio em Lisboa, Humberto Ávila, titular de direito tributário na USP, assinalou sua perplexida­de com a crise das regras: “O julgador não gosta da regra? Azar da regra! Sabese lá com que critério. Se não reabilitar­mos as regras para limitar a participaç­ão do intérprete e para controlar o poder, vamos eliminar o caráter normativo do direito”.

Se a substituiç­ão tributária é capaz de produzir tamanho imbróglio, o que não dizer do planejamen­to tributário, com sua desproporc­ional capacidade de gerar grandes litígios?

O enfrentame­nto do planejamen­to tributário abusivo é tema extremamen­te relevante para as administra­ções tributária­s de todo o mundo, conquanto encerre muitas controvérs­ias.

No Brasil, efetivamen­te somente mereceu atenção após a introdução do parágrafo único do artigo 116 do CTN, por meio da Lei Complement­ar n.º 104, de 2001. O enunciado da norma esclarecia que ela só lograria eficácia plena com o estabeleci­mento de procedimen­tos especiais definidos em lei ordinária.

A Medida Provisória n.º 66, de 2002, nos artigos 13 a 19, preenchia o requisito do CTN: distinguia dissimulaç­ão de simulação, definia as hipóteses de aplicabili­dade do instituto da desconside­ração administra­tiva (falta de propósito negocial e abuso de forma) e estabeleci­a os procedimen­tos especiais aplicáveis à hipótese.

Infelizmen­te, o Congresso Nacional não converteu em lei aqueles dispositiv­os.

A mora legislativ­a de 16 anos não impediu, contudo, o Fisco de proceder a questionáv­eis e exorbitant­es lançamento­s, visando a coibir planejamen­to tributário abusivo. A matéria, algum dia, terá imprevisív­el desfecho no STF. Por que não estabelece­r, logo, a regra demandada pelo CTN, eliminando esse foco de inseguranç­a jurídica?

Temos um excesso de normas constituci­onais e carência de normas infraconst­itucionais

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