Um retrato cubista do universo cinematográfico
No Festival de Cannes, que abriu no ano passado (que foi a 70.ª edição do evento), Os Fantasmas de Ismael teve direito a uma crítica formulada na hora por um jornalista espanhol. Seria – é – uma espécie de retrato cubista do universo cinematográfico de Arnaud Desplechin, formulado pelo autor. O crítico acrescentou que, como filme, era instável e irregular – imperfeito –,
mas justamente a imperfeição fazia o seu charme. Nada mais exato.
Não é de hoje que o cinema de Desplechin, além de autoral, é autorreferencial. Ele está sempre se voltando para os mesmos filmes, personagens – Dedalus, Bloom (inspirados em James Joyce), Ismael (de Reis e Rainha). Os Fantasmas de Ismael oferece nada menos de quatro filmes em um, daí o retrato cubista identificado pelo jornalista espanhol.
No anterior Três Lembranças da Minha Juventude, Desplechin há havia oferecido uma narrativa tripartite. Agora, e talvez não de maneira tão clara, são quatro. Ismael, Mathieu Amalric, é cineasta e o filme dá conta do seu processo criativo (1); o traumatizado Ismael foi abandonado pela mulher há mais de 20 anos e ela, que nunca deixou de ser um fantasma a assombrar sua criação, do nada ressurge para complicar sua vida (2); como ele tem outra mulher, você pode imaginar o estrago que causa o retorno de
Carlotta, vivida por Marion Cotillard (3); e tudo isso ocorre em meio ao processo de realização do novo filme (4).
O formato do filme dentro do filme é metalinguístico, e Desplechin aproveita para brincar com (desconstruir?) os gêneros. Um toque de suspense aqui, outro de romance ali, uma pitada de humor absurdo. Tudo isso pode parecer excessivo até quase o registro da autoparódia. Exige uma habilidade especial para orquestrar tantas histórias, tantos estilos, diferentes. Na entrevista, Charlotte Gainsbourg, que vive Sílvia, fala das importância que o diretor atribui ao diálogo. E, no diálogo escrito, já está implícita a forma como Desplechin espera que os atores interpretem os papéis. Esse papel de mulher madura, corroída pelos traumas do passado, Charlotte já interpretou para Lars Von Trier e até venceu como melhor atriz em Cannes, por Anticristo, de 2009. Marion é sempre perfeita para expressar uma certa confusão
mental. Cara a cara com o marido, quando se reencontram, passa um sentimento de malestar, de inadequação.
Mathieu Amalric, como o marido artista, também é bom como homem levado ao limite. E Louis Garrel (como Ivan Dedalus), arrastado a uma aventura diplomática – na ficção –, mesmo aparecendo pouco, consegue marcar uma forte presença num outro tipo de personagem.
Imperfeito, sim. Autoral. Mas é isso que torna Os Fantasmas de Ismael atraente. O diretor exercita-se, o elenco exercita-se. Arnaud Desplechin precisou realizar nove filmes e ganhar prêmios como o César, o Oscar francês, para arriscar tudo num experimentalismo que parece mais radical do que nunca em sua obra. Como homem e como diretor, ele se expõe. Algumas partes parecem mais resolvidas, mas a indiferença não cabe nesse retrato do artista.