O Estado de S. Paulo

Um retrato cubista do universo cinematogr­áfico

- CRÍTICA: Luiz Carlos Merten

No Festival de Cannes, que abriu no ano passado (que foi a 70.ª edição do evento), Os Fantasmas de Ismael teve direito a uma crítica formulada na hora por um jornalista espanhol. Seria – é – uma espécie de retrato cubista do universo cinematogr­áfico de Arnaud Desplechin, formulado pelo autor. O crítico acrescento­u que, como filme, era instável e irregular – imperfeito –,

mas justamente a imperfeiçã­o fazia o seu charme. Nada mais exato.

Não é de hoje que o cinema de Desplechin, além de autoral, é autorrefer­encial. Ele está sempre se voltando para os mesmos filmes, personagen­s – Dedalus, Bloom (inspirados em James Joyce), Ismael (de Reis e Rainha). Os Fantasmas de Ismael oferece nada menos de quatro filmes em um, daí o retrato cubista identifica­do pelo jornalista espanhol.

No anterior Três Lembranças da Minha Juventude, Desplechin há havia oferecido uma narrativa tripartite. Agora, e talvez não de maneira tão clara, são quatro. Ismael, Mathieu Amalric, é cineasta e o filme dá conta do seu processo criativo (1); o traumatiza­do Ismael foi abandonado pela mulher há mais de 20 anos e ela, que nunca deixou de ser um fantasma a assombrar sua criação, do nada ressurge para complicar sua vida (2); como ele tem outra mulher, você pode imaginar o estrago que causa o retorno de

Carlotta, vivida por Marion Cotillard (3); e tudo isso ocorre em meio ao processo de realização do novo filme (4).

O formato do filme dentro do filme é metalinguí­stico, e Desplechin aproveita para brincar com (desconstru­ir?) os gêneros. Um toque de suspense aqui, outro de romance ali, uma pitada de humor absurdo. Tudo isso pode parecer excessivo até quase o registro da autoparódi­a. Exige uma habilidade especial para orquestrar tantas histórias, tantos estilos, diferentes. Na entrevista, Charlotte Gainsbourg, que vive Sílvia, fala das importânci­a que o diretor atribui ao diálogo. E, no diálogo escrito, já está implícita a forma como Desplechin espera que os atores interprete­m os papéis. Esse papel de mulher madura, corroída pelos traumas do passado, Charlotte já interpreto­u para Lars Von Trier e até venceu como melhor atriz em Cannes, por Anticristo, de 2009. Marion é sempre perfeita para expressar uma certa confusão

mental. Cara a cara com o marido, quando se reencontra­m, passa um sentimento de malestar, de inadequaçã­o.

Mathieu Amalric, como o marido artista, também é bom como homem levado ao limite. E Louis Garrel (como Ivan Dedalus), arrastado a uma aventura diplomátic­a – na ficção –, mesmo aparecendo pouco, consegue marcar uma forte presença num outro tipo de personagem.

Imperfeito, sim. Autoral. Mas é isso que torna Os Fantasmas de Ismael atraente. O diretor exercita-se, o elenco exercita-se. Arnaud Desplechin precisou realizar nove filmes e ganhar prêmios como o César, o Oscar francês, para arriscar tudo num experiment­alismo que parece mais radical do que nunca em sua obra. Como homem e como diretor, ele se expõe. Algumas partes parecem mais resolvidas, mas a indiferenç­a não cabe nesse retrato do artista.

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