O Estado de S. Paulo

Matemática

- LUIS FERNANDO VERISSIMO ESCREVE ÀS QUINTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Opresident­e Abraham Lincoln escolheu o general Ulysses S. Grant para liderar as forças do Norte na Guerra Civil americana porque Grant, segundo Lincoln, não tinha medo da matemática.

Além de ser um reconhecid­o estrategis­ta, Grant não hesitava em ordenar ataques frontais ao inimigo sabendo que a contagem de baixas seria horrorosa. A tétrica aritmética da Guerra Civil americana só seria superada pela da Grande Guerra de 1914, quando milhares de vidas podiam ser sacrificad­as num só dia por nada – como na batalha do Somme, em que 50 mil soldados ingleses morreram avançando contra fogo alemão sem que um metro de terreno fosse conquistad­o. Na verdade, mais de três milhões de seres humanos foram sacrificad­os nos três anos da Primeira Guerra Mundial sem que a frente de batalha se movesse, para um lado ou para o outro, mais de algumas milhas. Nos dois lados havia generais dispostos a enfrentar a aritmética. Durante três anos, generais, governante­s, políticos, intelectua­is, imprensa e povo dos dois lados conviveram, patriotica­mente, com a aritmética. Justifican­do-a ou – o mais cômodo, pelo menos para quem não estava numa trincheira – ignorando-a.

A Guerra de 14 foi um exemplo extremo de estupidez militar e civil e até hoje historiado­res discutem as causas reais de tamanha insensatez coletiva. Mas ela teve seus justificad­ores. Era a Europa liberal resistindo ao militarism­o alemão. A Guerra Civil americana também tinha tido, pelo menos na superfície, a justificat­iva nobre da abolição da escravatur­a. A aritmética do terror aéreo que a Alemanha lançou na outra grande guerra, a Segundona, depois de ensaiá-lo na Espanha, teve por trás o sonho pan-germânico de Hitler, que só virou coisa de louco porque ele perdeu. A aritmética dos campos de extermínio nazistas era justificad­a pela purificaçã­o da raça ariana. A aritmética dos bombardeio­s gratuitos de Dresden e de Hiroshima e Nagasaki se justificav­a como castigo para quem tinha começado a guerra. A aritmética dos gulags e dos expurgos stalinista­s se justificav­a pelo ideal comunista. A aritmética do terrorista suicida palestino se justifica por uma causa, a aritmética da represália israelense se justifica por outra. E há tantas maneiras de ignorar a aritmética como há de defendê-la, ou exaltá-la como uma virtude militar, como Lincoln fez com Grant.

No Brasil convivemos com a desigualda­de e com um exército de excluídos que não são menos vítimas de um descaso histórico por serem um genocídio distraído, com o qual nos acostumamo­s. Mas a matemática do descaso histórico nos bate na cara todos os dias.

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