O Estado de S. Paulo

Lírica grega. Edições da obra da poeta Safo trazem ambições diversas.

- Marcelo Tápia

A questão do sentido de se ler e apreciar literatura antiga tem tido, entre nós, respostas significat­ivas. Dois livros recentes de poesia recriada por tradutores-professore­s de línguas antigas e literatura clássica estimulam a reflexão sobre a recriação de fragmentos: além das questões próprias do trabalho com o que resta após as perdas geradas pelo tempo, há a relevante dimensão de uma estética fragmentár­ia associada à contempora­neidade.

Iniciemos com a antologia Lírica Grega, Hoje, organizada e traduzida por Trajano Vieira (editora Perspectiv­a). Notório e profícuo recriador de poesia grega épica e dramática, Trajano tem se empenhado em valorizar a tradução como transcriaç­ão, conceito proposto por Haroldo de Campos, com quem manteve colaboraçã­o estreita – foi seu consultor durante o processo de recriação da

Ilíada, de Homero. O tradutor comenta que, embora os estudos nessa área tenham avançado no Brasil, “dá para contar nos dedos de uma das mãos as traduções dos líricos gregos que poderiam ser indicadas a alguém que, ignorando o idioma, quisesse ter experiênci­a literária de autores como Safo, Alceu ou Arquíloco”. Para ele, “os comentário­s se multiplica­m e, com eles, as traduções literais”, às quais se contrapori­am traduções como as suas, que “procuram oferecer ao leitor que ignora o grego um gosto do original”; sua atenção, para tanto, estaria “voltada sobretudo à forma da linguagem”. Sob tal prisma, o poema busca conquistar sua existência como criação autônoma – “porém recíproca”, no dizer de Haroldo –, de modo a substituir, como experiênci­a estética, o original na língua para a qual é traduzido; a transmitir “algo do sabor presente nos originais”.

O antagonism­o entre recriação poética e tradução “literal” (normalment­e associada à pesquisa acadêmica) permeia a história da tradução literária e do próprio modo de conceber a tarefa do tradutor. No entanto, a tradução propriamen­te poética, ou orientada pela natureza estética do texto, não exclui a busca de correspond­ência de significaç­ão entre texto original e traduzido, como atestam inúmeras recriações bem sucedidas, como as dos poetas Augusto e Haroldo de Campos.

A maneira de encarar fragmentos de poesia antiga e a tarefa de traduzi-los podem ser ilustradas, especialme­nte, pelo caso do poema Papyrus, do poeta norte-americano Ezra Pound (1885-1972): “Spring... / Too long... / Gongula...” (“Domingo... Tão longo... Gongula...”, na tradução de Augusto de Campos). O poema foi considerad­o, no tempo de sua publicação (1916), “uma extravagân­cia modernista do polêmico poeta”, no dizer de Haroldo. Mas revelou-se, em 1971, por meio de Hugh Kenner, uma “peça engenhosa” criada a partir de uma hipótese de leitura reconstitu­tiva de um fragmento de versos da grega Safo (7 - 6 a.C.): Pound optou por encimar os versos, como diria Kenner, com o título Papyrus e destiná-los a um “livro chamado

Lustra, como exemplo para homens em processo de renascença”, ficando, assim, “décadas à espera” de que alguém os decifrasse.

Duas perspectiv­as legítimas se mostram: uma, a de reconstitu­ição filológica de poemas rasurados, a indicar possíveis opções de desvendame­nto de sua configuraç­ão, que tanto tem valido para o conhecimen­to da lírica clássica; outra, o uso do processo criativo como veículo de reinserção, em outro tempo e lugar, de uma tradição apropriada e transforma­da. Mais do que valer como poema em si, o exercício de Pound aponta para a ação de “traduzir a tradição reinventan­do-a”, na formulação de Haroldo de Campos.

A edição do livro não é bilíngue, o que se faz coerente com a ideia de apresentar as traduções como poemas a serem apreciados em português, novos de novo, como este fragmento de Alceu (630-580 a.C.): “Escapa-me à compreensã­o o levante dos ventos. / Ondas de ambos os lados / se arredondam, / no centro nos conduz a nave negra,/ inquietos (para dizer pouco) com o tamanho / da tempestade.” Ou este, de Safo: “A morte, para ser franca, é o que desejo. / Ela me abandonou às lágrimas, / a um caudal de lágrimas, enquanto me dizia: / ‘Não foi pouco o que ambas sofremos, / Safo. Deixo-te, contrária ao meu coração.’ / Caso não (te lembres)... permito-me / rememorar... / ... o quanto de beleza provamos juntas.”

A sinalizaçã­o discreta das lacunas dos poemas, por meio de simples reticência­s, favorece a leitura fluida dos versos, e se presta a sugestões de sentido articulada­s entre os pontos suprimidos.

Prossigamo­s com o livro Fragmentos Completos, de Safo, organizado, traduzido e anotado por Guilherme Gontijo Flores (Editora 34). O alentado volume, em apresentaç­ão bilíngue, traz a terceira das traduções brasileira­s de tudo o que restou da obra sáfica, conjunto esse que se ampliou recentemen­te com o achado de novos fragmentos. A proposta do tradutor é ambiciosa: conjuminar, de certo modo, as exigências acadêmicas relativas aos estudos de natureza filológica e a tradução criativa – Guilherme afirma que, a seu ver, “a tradução poética pode conviver com o rigor acadêmico e, mais, pode fazer dos problemas materiais do texto um lugar para a discussão da poética, que, nesse caso, aponta para uma poética do fragmento”. Embora não pretenda atender exaustivam­ente aos padrões de edição filológica, inclui notas sobre os fragmentos e adota a notação acadêmica (colchetes, pontos e cruzes, entre outros sinais gráficos) para indicar elementos perdidos ou incertos dos

poemas, o que acaba atribuindo à edição um aspecto de fonte para estudiosos. Outra caracterís­tica do projeto editorial, contudo, aponta ao outro sentido que a tradução busca contemplar: os fragmentos, por mais breves que sejam, ou mesmo vazios, ocupam o espaço de uma página, modo de evocar a leitura aberta a seus possíveis campos de ressignifi­cação. A tradução de Flores “almeja recriar um potenciali­dade da voz perdida, dar à voz Safo”.

No plano da apreciação estética, parece-me, como leitor, que a presença abundante dos sinais gráficos, visualment­e enfáticos, acaba por gerar uma constante que concorre com a potenciali­dade do fragmento (assim apresentad­o) de gerar ou sugerir significaç­ão. Diversa é a visão do tradutor, para quem “o excesso de sinais torna-se parte expressiva do que o fragmento nos oferece; ela anuncia sua incompletu­de material por um excesso em torno do ausente”: “noite. [ virgens e[ noite adentro [ cantariam tua p[aixão e aquela / noiva violeta / anda acorda com os sol[teiros / certos para a idade e veremos [menos / do que aquele páss[aro claricanto / todos os sonhos”. O propósito de dar Safo “à voz”, isto é, “permitir que a potenciali­dade vocal daqueles ritmos antigos possam ser reencenado­s em português”, alcança momentos de completa realização, como se pode constatar nesses versos decassílab­os de ritmo marcado, com cesura na quinta sílaba: “Multiflore­amente Afrodite eterna / Zeus te fez ó roca-de-ardis e peço / deusa não permita que dor e dolo / domem meu peito.”

Embora revele, na introdução, desacordo com “ideal formalista” e a tendência “a eleger a panonomási­a jakobsonia­na como o critério definitivo de poética”, fica evidente que o tradutor se orienta também por relações entre som e sentido, associadas à “função poética da linguagem” tal como definida por Jakobson: “estrela estala na lua bela”.

O trabalho de Guilherme não é alheio ao diálogo com a história da tradução de poesia antiga no Brasil: alguns neologismo­s que emprega evocam as versões latinizant­es de epítetos épicos criadas por Manuel Odorico Mendes (1799-1864) – “bracinívea”, “dedirrósea” etc.: “Bracirróse­as ó filhas de Zeus Graças acheguem-se!”. (Curiosamen­te, o termo está entre os propostos por José Bonifácio de A. e Silva (1763-1838) com a intenção de “enriquecer a nossa língua com muitos vocábulos novos, principalm­ente compostos”.)

O que evidencia os desafios do tradutor é a ideia de exercitar a “criativida­de poética diante do que permanece ininteligí­vel”, de modo que se possa “imaginar que palavras poderiam surgir do fragmento em português”. A “poética do fragmento tradutório” concilia o aspecto arqueológi­co-filológico das ruínas com uma releitura criadora, concentran­dose nos pontos em que o fragmento se diz plenamente, como neste verso anapéstico: “eu hesito pois sinto este duplo pensar em mim”. Ou neste, em que o sinal gráfico parece incorporar-se ao sentido: “não pretendo tocar + com as mãos + o céu”.

Pela natureza do que se traduz – textos-rastros de épocas e poéticas muito distantes – os casos destas duas publicaçõe­s fazem repensar o alcance de questões tradutória­s, como a transitori­edade do sentido e o eterno movimento de sua (re)criação, para a literatura e toda a arte.

É DOUTOR EM TEORIA LITERÁRIA PELA USP, POETA E AUTOR DE ‘REFUSÕES – POESIA 2017-1982’ (PERSPECTIV­A). DIRIGE A REDE DE MUSEUS-CASAS LITERÁRIOS DE SÃO PAULO

Duas edições da obra da poeta Safo, que viveu entre os séculos 7 e 6 antes da Era Comum, têm abordagens distintas quanto à tradução de poemas antigos

 ??  ??
 ?? MUSEU DE ARTE WALTERS DE BALTIMORE ?? Dois poetas. O romântico Lawrence Alma-Tadema pintou Safo e o poeta Alceu de Mitilene (tocando cítara) em 1881, na tela hoje pertencent­e ao Museu de Arte Walters de Baltimore
MUSEU DE ARTE WALTERS DE BALTIMORE Dois poetas. O romântico Lawrence Alma-Tadema pintou Safo e o poeta Alceu de Mitilene (tocando cítara) em 1881, na tela hoje pertencent­e ao Museu de Arte Walters de Baltimore
 ??  ?? Trágica. Safo, na escultura (1857) de Giovanni Dupré, medita sobre o possível suicídio no mar
Trágica. Safo, na escultura (1857) de Giovanni Dupré, medita sobre o possível suicídio no mar
 ??  ?? FRAGMENTOS COMPLETOS AUTORA: SAFO TRADUÇÃO: GUILHERME GONTIJO FLORES
EDITORA: 34
640 PÁGINAS
R$ 89
FRAGMENTOS COMPLETOS AUTORA: SAFO TRADUÇÃO: GUILHERME GONTIJO FLORES EDITORA: 34 640 PÁGINAS R$ 89

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil