Lírica grega. Edições da obra da poeta Safo trazem ambições diversas.
A questão do sentido de se ler e apreciar literatura antiga tem tido, entre nós, respostas significativas. Dois livros recentes de poesia recriada por tradutores-professores de línguas antigas e literatura clássica estimulam a reflexão sobre a recriação de fragmentos: além das questões próprias do trabalho com o que resta após as perdas geradas pelo tempo, há a relevante dimensão de uma estética fragmentária associada à contemporaneidade.
Iniciemos com a antologia Lírica Grega, Hoje, organizada e traduzida por Trajano Vieira (editora Perspectiva). Notório e profícuo recriador de poesia grega épica e dramática, Trajano tem se empenhado em valorizar a tradução como transcriação, conceito proposto por Haroldo de Campos, com quem manteve colaboração estreita – foi seu consultor durante o processo de recriação da
Ilíada, de Homero. O tradutor comenta que, embora os estudos nessa área tenham avançado no Brasil, “dá para contar nos dedos de uma das mãos as traduções dos líricos gregos que poderiam ser indicadas a alguém que, ignorando o idioma, quisesse ter experiência literária de autores como Safo, Alceu ou Arquíloco”. Para ele, “os comentários se multiplicam e, com eles, as traduções literais”, às quais se contraporiam traduções como as suas, que “procuram oferecer ao leitor que ignora o grego um gosto do original”; sua atenção, para tanto, estaria “voltada sobretudo à forma da linguagem”. Sob tal prisma, o poema busca conquistar sua existência como criação autônoma – “porém recíproca”, no dizer de Haroldo –, de modo a substituir, como experiência estética, o original na língua para a qual é traduzido; a transmitir “algo do sabor presente nos originais”.
O antagonismo entre recriação poética e tradução “literal” (normalmente associada à pesquisa acadêmica) permeia a história da tradução literária e do próprio modo de conceber a tarefa do tradutor. No entanto, a tradução propriamente poética, ou orientada pela natureza estética do texto, não exclui a busca de correspondência de significação entre texto original e traduzido, como atestam inúmeras recriações bem sucedidas, como as dos poetas Augusto e Haroldo de Campos.
A maneira de encarar fragmentos de poesia antiga e a tarefa de traduzi-los podem ser ilustradas, especialmente, pelo caso do poema Papyrus, do poeta norte-americano Ezra Pound (1885-1972): “Spring... / Too long... / Gongula...” (“Domingo... Tão longo... Gongula...”, na tradução de Augusto de Campos). O poema foi considerado, no tempo de sua publicação (1916), “uma extravagância modernista do polêmico poeta”, no dizer de Haroldo. Mas revelou-se, em 1971, por meio de Hugh Kenner, uma “peça engenhosa” criada a partir de uma hipótese de leitura reconstitutiva de um fragmento de versos da grega Safo (7 - 6 a.C.): Pound optou por encimar os versos, como diria Kenner, com o título Papyrus e destiná-los a um “livro chamado
Lustra, como exemplo para homens em processo de renascença”, ficando, assim, “décadas à espera” de que alguém os decifrasse.
Duas perspectivas legítimas se mostram: uma, a de reconstituição filológica de poemas rasurados, a indicar possíveis opções de desvendamento de sua configuração, que tanto tem valido para o conhecimento da lírica clássica; outra, o uso do processo criativo como veículo de reinserção, em outro tempo e lugar, de uma tradição apropriada e transformada. Mais do que valer como poema em si, o exercício de Pound aponta para a ação de “traduzir a tradição reinventando-a”, na formulação de Haroldo de Campos.
A edição do livro não é bilíngue, o que se faz coerente com a ideia de apresentar as traduções como poemas a serem apreciados em português, novos de novo, como este fragmento de Alceu (630-580 a.C.): “Escapa-me à compreensão o levante dos ventos. / Ondas de ambos os lados / se arredondam, / no centro nos conduz a nave negra,/ inquietos (para dizer pouco) com o tamanho / da tempestade.” Ou este, de Safo: “A morte, para ser franca, é o que desejo. / Ela me abandonou às lágrimas, / a um caudal de lágrimas, enquanto me dizia: / ‘Não foi pouco o que ambas sofremos, / Safo. Deixo-te, contrária ao meu coração.’ / Caso não (te lembres)... permito-me / rememorar... / ... o quanto de beleza provamos juntas.”
A sinalização discreta das lacunas dos poemas, por meio de simples reticências, favorece a leitura fluida dos versos, e se presta a sugestões de sentido articuladas entre os pontos suprimidos.
Prossigamos com o livro Fragmentos Completos, de Safo, organizado, traduzido e anotado por Guilherme Gontijo Flores (Editora 34). O alentado volume, em apresentação bilíngue, traz a terceira das traduções brasileiras de tudo o que restou da obra sáfica, conjunto esse que se ampliou recentemente com o achado de novos fragmentos. A proposta do tradutor é ambiciosa: conjuminar, de certo modo, as exigências acadêmicas relativas aos estudos de natureza filológica e a tradução criativa – Guilherme afirma que, a seu ver, “a tradução poética pode conviver com o rigor acadêmico e, mais, pode fazer dos problemas materiais do texto um lugar para a discussão da poética, que, nesse caso, aponta para uma poética do fragmento”. Embora não pretenda atender exaustivamente aos padrões de edição filológica, inclui notas sobre os fragmentos e adota a notação acadêmica (colchetes, pontos e cruzes, entre outros sinais gráficos) para indicar elementos perdidos ou incertos dos
poemas, o que acaba atribuindo à edição um aspecto de fonte para estudiosos. Outra característica do projeto editorial, contudo, aponta ao outro sentido que a tradução busca contemplar: os fragmentos, por mais breves que sejam, ou mesmo vazios, ocupam o espaço de uma página, modo de evocar a leitura aberta a seus possíveis campos de ressignificação. A tradução de Flores “almeja recriar um potencialidade da voz perdida, dar à voz Safo”.
No plano da apreciação estética, parece-me, como leitor, que a presença abundante dos sinais gráficos, visualmente enfáticos, acaba por gerar uma constante que concorre com a potencialidade do fragmento (assim apresentado) de gerar ou sugerir significação. Diversa é a visão do tradutor, para quem “o excesso de sinais torna-se parte expressiva do que o fragmento nos oferece; ela anuncia sua incompletude material por um excesso em torno do ausente”: “noite. [ virgens e[ noite adentro [ cantariam tua p[aixão e aquela / noiva violeta / anda acorda com os sol[teiros / certos para a idade e veremos [menos / do que aquele páss[aro claricanto / todos os sonhos”. O propósito de dar Safo “à voz”, isto é, “permitir que a potencialidade vocal daqueles ritmos antigos possam ser reencenados em português”, alcança momentos de completa realização, como se pode constatar nesses versos decassílabos de ritmo marcado, com cesura na quinta sílaba: “Multifloreamente Afrodite eterna / Zeus te fez ó roca-de-ardis e peço / deusa não permita que dor e dolo / domem meu peito.”
Embora revele, na introdução, desacordo com “ideal formalista” e a tendência “a eleger a panonomásia jakobsoniana como o critério definitivo de poética”, fica evidente que o tradutor se orienta também por relações entre som e sentido, associadas à “função poética da linguagem” tal como definida por Jakobson: “estrela estala na lua bela”.
O trabalho de Guilherme não é alheio ao diálogo com a história da tradução de poesia antiga no Brasil: alguns neologismos que emprega evocam as versões latinizantes de epítetos épicos criadas por Manuel Odorico Mendes (1799-1864) – “bracinívea”, “dedirrósea” etc.: “Bracirróseas ó filhas de Zeus Graças acheguem-se!”. (Curiosamente, o termo está entre os propostos por José Bonifácio de A. e Silva (1763-1838) com a intenção de “enriquecer a nossa língua com muitos vocábulos novos, principalmente compostos”.)
O que evidencia os desafios do tradutor é a ideia de exercitar a “criatividade poética diante do que permanece ininteligível”, de modo que se possa “imaginar que palavras poderiam surgir do fragmento em português”. A “poética do fragmento tradutório” concilia o aspecto arqueológico-filológico das ruínas com uma releitura criadora, concentrandose nos pontos em que o fragmento se diz plenamente, como neste verso anapéstico: “eu hesito pois sinto este duplo pensar em mim”. Ou neste, em que o sinal gráfico parece incorporar-se ao sentido: “não pretendo tocar + com as mãos + o céu”.
Pela natureza do que se traduz – textos-rastros de épocas e poéticas muito distantes – os casos destas duas publicações fazem repensar o alcance de questões tradutórias, como a transitoriedade do sentido e o eterno movimento de sua (re)criação, para a literatura e toda a arte.
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É DOUTOR EM TEORIA LITERÁRIA PELA USP, POETA E AUTOR DE ‘REFUSÕES – POESIA 2017-1982’ (PERSPECTIVA). DIRIGE A REDE DE MUSEUS-CASAS LITERÁRIOS DE SÃO PAULO
Duas edições da obra da poeta Safo, que viveu entre os séculos 7 e 6 antes da Era Comum, têm abordagens distintas quanto à tradução de poemas antigos