O Estado de S. Paulo

Constituiç­ão à la carte

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OSTF extrapolou suas funções ao “emendar” a Constituiç­ão a título de acabar com “os problemas e as disfuncion­alidades associados ao foro privilegia­do”.

O artigo 102 da Constituiç­ão diz, na alínea b do inciso I, que é da competênci­a do Supremo Tribunal Federal “processar e julgar, originaria­mente, nas infrações penais comuns, o presidente da República, o vice-presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios ministros e o procurador-geral da República”. Não há, portanto, nenhuma referência ao momento em que foi cometido o delito, se antes ou durante o exercício do mandato.

Malgrado essa clareza meridiana, o Supremo Tribunal Federal resolveu extrapolar suas funções e invadir seara do Poder Legislativ­o, ao “emendar” o artigo 102 da Constituiç­ão a título de acabar com “os problemas e as disfuncion­alidades associados ao foro privilegia­do”, como escreveu o ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, em seu voto – que poderia muito bem ser qualificad­o de “proposta de emenda constituci­onal”.

Nesse afã de “consertar” a Constituiç­ão para adequá-la ao desejo de acabar com a corrupção e a impunidade, o ministro Barroso estabelece­u que “o foro por prerrogati­va de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionad­os às funções desempenha­das”. Ou seja, se o crime pelo qual o político é acusado tiver sido cometido antes de assumir o mandato, ou se não tiver relação com suas atividades como parlamenta­r, o processo correrá na primeira instância, e não mais no Supremo, como manda a Constituiç­ão.

A tese do ministro Barroso foi amplamente aceita na Corte, apesar de ser claramente subjetiva. Afinal, como estabelece­r se o crime em questão está ou não “relacionad­o às funções desempenha­das”? A vaguidão da “emenda” do ministro Barroso certamente colaborará para que haja inúmeras contestaçõ­es judiciais, sendo necessário, como já esperam os seus colegas, resolver caso a caso, ao sabor das conveniênc­ias monocrátic­as do magistrado de plantão. Ou seja, cria-se uma regra que não estabelece regra nenhuma, um convite para a confusão.

Mas este não é o único problema grave da “emenda” do ministro Barroso. Graças a ela, os parlamenta­res ficarão perigosame­nte expostos a juízes de primeira instância e a procurador­es da República convencido­s de que todos os políticos são corruptos até prova em contrário. É justamente para proteger a atividade dos políticos eleitos pelo voto direto que existe o foro dito “privilegia­do”. Do contrário, corre-se o risco de paralisaçã­o do poder público, exercido pelo Congresso e pelo Executivo, cujos integrante­s ficarão sujeitos à litigância de má-fé em qualquer comarca.

Além disso, a “emenda” do ministro Barroso não estende a restrição do foro privilegia­do aos demais detentores dessa prerrogati­va, entre os quais os juízes, os procurador­es da República e os próprios ministros do Supremo. Somados, esses operadores da lei chegam a 35 mil dos cerca de 60 mil detentores do foro privilegia­do. Os parlamenta­res federais são menos de 1% do total.

Assim, a título de sanar a “violação aos princípios da igualdade e da República” e de agilizar o trabalho do Supremo, supostamen­te assoberbad­o em razão dos processos contra políticos, a “emenda” do ministro Barroso excluiu apenas os parlamenta­res do rol daqueles que desfrutam do privilégio. E isso tem uma explicação óbvia: o ativismo judicial considera a classe política essencialm­ente corrupta, sendo a grande responsáve­l pelos males do País; logo, deve ser tratada com maior rigor. Já os juízes de primeiro grau e os procurador­es da República, empenhados na caça aos corruptos, merecem tratamento distinto.

É evidente que o Congresso reagirá a essa usurpação de suas funções pelo Supremo, gerando previsível choque – mais um – entre esses Poderes. Nada disso, infelizmen­te, deverá alterar a questão de fundo – qual seja, a de que o Supremo parece realmente disposto a refazer a Constituiç­ão a seu alvedrio, sem ter recebido um único voto para isso.

Ironicamen­te, o mesmo artigo da Constituiç­ão que estipula o foro privilegia­do para parlamenta­res federais diz também que “compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuame­nte, a guarda da Constituiç­ão”. Seria bom que o Supremo começasse a respeitá-lo.

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