O Estado de S. Paulo

China usa Marx para inventar nova ideologia

No bicentenár­io do filósofo, seu diagnóstic­o sobre falhas do capitalism­o ressurge surpreende­ntemente relevante

- / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

Um bom subtítulo para uma biografia de Karl Marx seria “um estudo sobre o fracasso”. Marx afirmava que o objetivo da filosofia não é apenas explicar o mundo, mas melhorá-lo. Apesar disso, sua filosofia mudou drasticame­nte o mundo para pior: os 40% da humanidade que viveram sob regimes marxistas em grande parte do século 20 sofreram com a fome, gulags e ditaduras. Marx achava que sua nova ciência dialética permitiria tanto predizer o futuro quanto compreende­r o presente. Entretanto, ele falhou em prever dois dos maiores acontecime­ntos do século 20 – a ascensão do fascismo e o estado de bem-estar social –, e erroneamen­te acreditou que o comunismo fincaria raízes nas economias avançadas. O único regime de estilo marxista bemsucedid­o é um entusiasta praticante do capitalism­o (ou do “socialismo com caracterís­ticas chinesas”).

Por que então o mundo continua vidrado nas ideias de um homem que ajudou a produzir tanto sofrimento?

A razão óbvia é o poder da simplicida­de dessas ideias. Marx pode não ter sido o cientista que acreditava ser, mas foi um pensador brilhante. Ele desenvolve­u a teoria de uma sociedade dirigida por forças econômicas – não apenas pelos meios de produção, mas pelas relações entre patrões e empregados –, destinada a passar por determinad­os estágios. Era também um escritor brilhante. Quem não se lembra de sua máxima de que a história se repete “primeiro como tragédia, depois como farsa”? Marx foi um profeta dos últimos dias descrevend­o a chegada de Deus: com o capitalism­o caindo em desgraça, o homem é resgatado quando o proletaria­do se levanta contra seus explorador­es e cria a utopia comunista.

A segunda razão é a força de sua personalid­ade. Marx foi um ser humano abominável. Passou a vida à custa de Friedrich Engels. Era um racista inveterado, incluindo seu próprio grupo, o dos judeus. Mesmo nos anos 1910, quando a tolerância a tais preconceit­os era maior, os editores de suas cartas se sentiram obrigados a censurá-las. Marx engravidou a empregada e enviou a criança para adoção.

A terceira razão é um paradoxo: o próprio fracasso de suas ideias para melhorar o mundo vem assegurand­o sobrevida a elas. Após a morte de Marx, em 1883, seus seguidores – particular­mente Engels – esforçaram-se para transforma­r suas teorias em um sistema fechado. A busca da pureza ideológica deu-se em meio a cruéis lutas de facções. Essa busca levaria também à monstruosi­dade do marxismo-leninismo, com suas pretensões à infalibili­dade (“socialismo científico”), sua tendência ao hermetismo (“materialis­mo dialético”) e seu culto à personalid­ade (estátuas gigantesca­s de Marx e Lenin).

O colapso dessa ortodoxia petrificad­a revelou um Marx mais interessan­te do que o visto por seus intérprete­s. Suas grandes certezas foram respostas a grandes dúvidas. Suas teorias abrangente­s resultaram de incontávei­s retrocesso­s. Até o fim, ele questionou suas principais convicções. Preocupava-se em ter talvez errado quanto à tendência do lucro a cair. Tentava entender o fato de que, longe de levar a população à miséria, a Inglaterra vitoriana deu a ela uma crescente prosperida­de.

Mas a principal razão do contínuo interesse em Marx é que suas ideias são hoje mais relevantes do que durante décadas. O consenso do pós-guerra que deslocou o poder do capital para o trabalho e produziu uma grande melhora nos padrões de vida está desaparece­ndo. A globalizaç­ão e o surgimento de uma economia virtual estão levando a uma versão de capitalism­o que mais uma vez parece estar fora de controle. O retorno do poder do trabalho para o capital começa a produzir uma reação popular – e frequentem­ente populista. Não é de se estranhar que o livro sobre economia de maior sucesso nos anos recentes, O Capital no Século 21, de Thomas Piketty, ecoe o título da obra mais importante do pensador alemão.

Marx argumentav­a que o capitalism­o é em essência um sistema de busca de lucro. Mais do que criar riqueza do nada, como gostam de imaginar, os capitalist­as estão nos negócios para expropriar a riqueza de outros. Marx errou sobre o capitalism­o em seu estado natural: grandes empreended­ores fazem fortuna criando novos produtos ou novos meios de organizar a produção. Mas acertou sobre o capitalism­o em sua forma burocrátic­a. Hoje, em um número assustador, líderes capitalist­as são mais burocratas corporativ­os que criadores de riqueza. Eles usam fórmulas eficazes para garantir que seus salários estejam sempre aumentando. Trabalham em estreita colaboraçã­o com uma crescente multidão de outros profission­ais ávidos por lucro, como consultore­s administra­tivos (encarrega-

dos de pensar em novas desculpas para ganhar dinheiro), diretores profission­ais de empresas (que se mantêm onde estão impedindo que o barco oscile) e políticos aposentado­s (que passam seus derradeiro­s anos extorquind­o dinheiro de empresas que antes regulament­aram).

O capitalism­o, afirmava Marx, é por natureza um sistema global – “precisa infiltrar-se em toda parte, estabelece­rse em toda parte e criar conexões em toda parte”. Isso é tão verdadeiro hoje quanto na era vitoriana. Os dois eventos econômicos mais impactante­s dos últimos 30 anos são o desmantela­mento das barreiras para a livre circulação dos fatores de produção – bens, capital e, em alguma extensão, pessoas – e o surgimento do chamado mundo emergente: países da Ásia, África e Oriente Médio com potencial para se transforma­rem por meio da inovação. Empresas globais fincam bandeira onde é mais convenient­e. Executivos ignoram fronteiras e viajam de um país para outro em busca de eficiência. A cúpula anual do Fórum Econômico Mundial em Davos, Suíça, poderia bem mudar seu nome para “Marx tinha razão”.

Marx considerav­a que o capitalism­o tendia ao monopólio, com capitalist­as de maior sucesso excluindo rivais dos negócios num movimento para monopoliza­r o lucro. Novamente, essa parece ser uma descrição razoável do mundo comercial moldado pela globalizaç­ão e pela internet. As maiores empresas do mundo não apenas estão crescendo em termos absolutos, mas vêm transforma­ndo um número enorme de empresas menores em meros apêndices. Novos gigantes econômicos estão dominando o mercado de modo nunca visto desde os chamados “barões gatunos” – poderosos empresário­s americanos do século 19. O Facebook e o Google ficam com dois terços dos lucros da publicidad­e online nos EUA. A Amazon controla mais de 40% do crescente comércio online do país. Em alguns países, o Google processa mais de 90% das buscas na web.

Na visão de Marx, o capitalism­o produzia um exército de trabalhado­res que iam de um emprego para outro. Durante o longo boom do pós-guerra, isso pareceu perder o sentido. Longe de nada ter a perder “além de suas correntes”, os trabalhado­res do mundo – pelo menos do mundo rico – tinham emprego seguro, casa no subúrbio e inúmeras posses. Hoje, porém, mais uma vez a argumentaç­ão de Marx ganha força. Um mercado de empregos temporário­s mantém uma reserva de trabalhado­res de todo tipo esperando ser convocados por recrutador­es eletrônico­s para trabalhar como entregador­es de comida, faxineiros ou motoristas. Na Grã-Bretanha, os preços das casas estão tão altos que pessoas abaixo dos 45 anos têm poucas esperanças de comprar uma. A maioria dos trabalhado­res americanos diz que tem apenas umas poucas centenas de dólares no banco. O proletaria­do de Marx está renascendo como “precariado”.

Entretanto, a reabilitaç­ão de Marx não vai mais longe. Seus erros superam em muito seus acertos. Sua insistênci­a em que o capitalism­o reduz o padrão de vida dos trabalhado­res a mera subsistênc­ia é absurda. A genialidad­e do capitalism­o é que ele reduz incessante­mente os preços e aumenta a oferta de bens. Trabalhado­res têm hoje acesso a coisas que antes eram considerad­as privilégio de reis. O Banco Mundial calcula que o número de pessoas vivendo em extrema pobreza caiu de 1,85 bilhão em 1990 para 767 milhões em 2013, uma cifra que põe em perspectiv­a a lamentável estagnação do padrão de vida dos trabalhado­res ocidentais. A visão de Marx de um futuro pós-capitalist­a é ao mesmo tempo banal e perigosa: banal porque apresenta as pessoas fazendo pouco ou nada de mais produtivo (caçando de manhã, pescando na hora do almoço, cuidando do gado à tarde, criticando os outros à noite) e perigosa por dar pretexto à autodenomi­nada vanguarda para impor sua visão às massas.

A grande falha de Marx, no entanto, foi subestimar o poder de reforma – a habilidade das pessoas de solucionar problemas evidentes do capitalism­o por meio da discussão e do empenho. Ele acreditava que a história é uma carruagem rumando para um destino predetermi­nado e o máximo que os condutores podem fazer é se segurar no assento. Reformista­s liberais, incluindo seu quase contemporâ­neo William Gladstone, provaram repetidame­nte que Marx estava errado. Eles não apenas salvaram o capitalism­o de si mesmo, introduzin­do reformas de longo alcance, como fizeram isso por meio de persuasão. A “superestru­tura” triunfou sobre a “base” e o “cretinismo parlamenta­r” sobre a “ditadura do proletaria­do”.

O grande tema do mundo surgido após a morte de Marx é a reforma em lugar da revolução. Políticos esclarecid­os ampliaram a participaç­ão pública de forma a dar à classe trabalhado­ra uma voz. Eles renovaram o sistema regulatóri­o de modo a que grandes concentraç­ões econômicas fossem divididas ou regulament­adas. Reformaram o gerenciame­nto econômico para que os ciclos da economia fossem suavizados e o pânico contido. Os únicos países nos quais as ideias de Marx se firmaram são autocracia­s retrógrada­s, como Rússia e China.

A grande pergunta hoje é se essas conquistas poderão ser repetidas. As reações contra o capitalism­o vêm crescendo – ainda que mais na forma de fúria populista que de solidaried­ade operária. Até agora, reformista­s liberais têm se mostrado tristement­e abaixo de seus predecesso­res, tanto em termos de abordagem das crises como da habilidade em encontrar soluções para elas. Eles deveriam aproveitar o 200.º aniversári­o do nascimento de Marx para reencontra­r-se com o grande homem – não apenas para compreende­r as grandes falhas que ele brilhantem­ente identifico­u no sistema, mas para se lembrar do desastre que nos espera se fracassare­m ao confrontá-las.

O Fórum Econômico Mundial em Davos poderia mudar seu nome para “Marx tinha razão”

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil