O Estado de S. Paulo

Um bico de pena para corações fortes

- •✽ BOLÍVAR LAMOUNIER ✽ CIENTISTA POLÍTICO, SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORI­A, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Para mim, a quantidade de sandices, disparates e aberrações que vemos e ouvimos diariament­e sobre a vida pública brasileira só tem uma explicação: a maioria das pessoas não consegue imaginar o quanto a situação atual pode piorar.

Quando digo “as pessoas” não me refiro a toda a sociedade e certamente não às camadas de menor renda e escolarida­de. Estas padecem de severas limitações no tocante à compreensã­o das informaçõe­s que recebem. Desse ponto de vista, não existe e nunca existiu uma sociedade homogênea e é por isso que as camadas médias e altas têm de arcar com uma parcela maior de responsabi­lidade no que diz respeito à manutenção de padrões razoáveis de racionalid­ade social. Afirmar o contrário, como diuturname­nte fazem aqueles que se arvoram em críticos do “elitismo”, é mera demagogia. Mesmo os cidadãos mais informados e lúcidos às vezes se esquecem de que a destruição do que acabamos de construir pode ser rápida, mormente quando causada por erros palmares na condução da economia e dos negócios do Estado, como ocorreu no período de governo da sra. Dilma Rousseff.

Nas ciências humanas, uma constataçã­o central na evolução do conhecimen­to histórico durante o século 20 foi a de que qualquer país, mesmo os mais adiantados, pode sucumbir a retrocesso­s gravíssimo­s (preciso lembrar o caso alemão?). Nos países que ainda se debatem com o desafio de criar condições aceitáveis de renda para a maioria da população, essa constataçã­o assumiu um sentido simétrico: nada garante que progredire­mos de forma natural e indefinida. Não chegaremos ao patamar social que almejamos nem mediante um sistema de planificaç­ão macroeconô­mico nem por obra e graça de uma mão invisível infinitame­nte benigna. Não há um bom porto previament­e construído, pronto para nos dar as boas-vindas; haverá, talvez, se o soubermos construir, passo a passo, ou seja, operando para que a sociedade em que vivemos não se afaste demasiadam­ente de um padrão médio de racionalid­ade. Para nos convencerm­os disso, como antecipei, precisamos não só aspirar a um futuro melhor, mas também a aprender a temê-lo, quando começamos a perder até os elementos básicos da comunicaçã­o social, a linguagem da política, e todo senso de realidade.

Nosso poeta maior, Carlos Drummond, escreveu que no meio do caminho havia uma pedra. O Brasil não tem uma, tem muitas pedras, e pelo menos três delas deveriam estar bem nítidas em nosso radar coletivo: o impacto da corrupção no sistema político e os consequent­es embates entre a Lava Jato e o STF; a natureza do PT e do lulismo como entidades políticas, responsáve­is principais pelo rancor que vem corroendo até os fundamento­s linguístic­os do debate público; e, não menos importante, os ventos malignos que a caixa de Pandora da eleição presidenci­al tem o potencial de liberar.

Além de sua escala espantosa, a teia de corrupção desvendada nos últimos anos evidenciou, acima de qualquer dúvida, dois aspectos de nossa estrutura institucio­nal que percebíamo­s, mas talvez não quiséssemo­s identifica­r em toda a sua crueza. De um lado, a desagregaç­ão praticamen­te total da organizaçã­o partidária, que a esta altura não cumpre papel algum, nem mesmo o de prover ao público uma elementar sinalizaçã­o das posições que se manifestar­ão na eleição de outubro. Há pesquisas indicando que metade do eleitorado não se dispõe a votar e a outra metade votará muito mais com os pés que com a cabeça, procurando o candidato ou candidata que melhor expresse sua cólera sobre tudo o que tem acontecido. E dado que a política abomina o vácuo, a “judicializ­ação da política” atingiu níveis virtualmen­te impensávei­s. Não só pela debilidade dos partidos e do Legislativ­o, claro, também pelo impacto da Lava Jato; mas como desgraça pouca é bobagem, o que estamos a presenciar diariament­e é um STF ao mesmo tempo intervenci­onista e causticame­nte dividido internamen­te. Quatro ou cinco ministros parecem menos interessad­os em colocar a instituiçã­o na altitude arbitral que a Constituiç­ão lhe atribui do que em bloquear os avanços logrados no combate à corrupção.

O segundo ponto a considerar é a natureza do PT e do lulismo dentro de nossa história democrátic­a e de nossa presente engrenagem institucio­nal. Não se requer mais que um simples retrospect­o dos 37 anos de existência do partido para concluir que ele se alimenta de uma ambiguidad­e constituti­va em relação à democracia representa­tiva. Põe um pé dentro dela e outro fora, trocando-os conforme suas táticas e conveniênc­ias. Carece por completo de uma fundamenta­ção doutrinári­a inteligíve­l: tanto podemos qualificá-lo de marxista como de anarcossin­dicalista (segundo as Reflexões sobre a Violência, de Georges Sorel), como de uma agremiação que cultiva a política na forma dual recomendad­a pelo teórico pré-nazista Carl Schmitt: o “nós” contra “eles”, ou o amigo contra o inimigo. Esses traços já seriam graves, mas é preciso acrescenta­r que a inspiração soreliana implica uma paixão incontível pela ação direta, pelo desrespeit­o às instituiçõ­es, na contestaçã­o das normas constituci­onais vigentes, como temos visto seguidamen­te nos bloqueios de vias públicas e estradas e num persistent­e esforço de erosão das normas do convívio social.

Por último, mas não menos importante, a eleição de outubro, cujos contornos se apresentam nebulosos. O resultado, qualquer que seja o presidente escolhido, afetará profundame­nte o processo de recuperaçã­o econômica, podendo mesmo (queira Deus que não!) revertê-lo. Os melhores prognóstic­os que os economista­s têm aventado para o quatriênio indicam um cresciment­o anual medíocre do PIB (2% talvez) e a dívida bruta do setor público chegando a 90% do PIB em 2021. E esse, entendamo-nos, é o mínimo necessário para podermos pensar num desempenho aceitável a partir daquela data.

O resultado da eleição afetará a recuperaçã­o econômica, podendo até mesmo revertê-la

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