O Estado de S. Paulo

Mudança das estações

- VERA MAGALHÃES E-MAIL: VERA.MAGALHAES@ESTADAO.COM TWITTER: @VERAMAGALH­AES POLITICA.ESTADAO.COM.BR/BLOGS/VERA-MAGALHAES/

Meu filho caçula está estudando o período da escravidão no Brasil. Chega diariament­e chocado da escola, sem acreditar que na História do País tenha havido um período em que homens, mulheres e crianças eram propriedad­e de outros. E isso era assegurado pelo Direito.

A escravidão perdurou no Brasil de 1530 a 1888, e só foi abolida depois de inúmeras revoluções frustradas, à custa de pressão internacio­nal, e ainda assim de forma paulatina. Vieram antes a Lei do Ventre Livre e a dos Sexagenári­os, numa tentativa da elite de conter o trem da História. Entre a primeira dessas leis e a Áurea, que extinguiu de vez aquela chaga, se passaram apenas 17 anos, num sinal de que não adiantava mais tentar adiar o fim de um ciclo histórico.

Havia, como sabemos, justificat­ivas econômicas e até morais para a manutenção de um regime que hoje é hediondo aos olhos de adultos e crianças do século 21. As conversas com o pequeno me levaram a traçar um paralelo com o tema da semana, o início da revisão do foro privilegia­do.

Na origem da prerrogati­va estão razões filosófica­s, históricas e constituci­onais sólidas e justificáv­eis. Em períodos de exceção democrátic­a, o foro e as demais garantias constituci­onais asseguram – ou deveriam assegurar, não fosse o fato de que, em períodos de exceção, essas são facilmente suprimidas – o livre exercício de mandatos eletivos.

Acontece que no Brasil o foro virou, de modo geral, um biombo atrás do qual se escondem políticos que veem nos mandatos não investidur­as populares para exercer função pública, mas veículos para delinquir, se perpetuar no poder e retardar o encontro com a Justiça. “Ah, mas não são todos os políticos que são bandidos.” Certamente não. E, para os que não são, a redução da abrangênci­a do foro não será um motivo para perder o sono.

A meu ver é uma falácia dizer que rever o foro privilegia­do é uma maneira de criminaliz­ar a política e fragilizar a independên­cia dos ocupantes de cargos eletivos. Isso porque, da maneira que começou a ser implementa­da nesta semana, a nova regra mantém a proteção a esses eleitos no período em que exerçam os mandatos e naquilo que concerne a eles.

A mudança feita pelo STF é a ideal? Evidenteme­nte não. Mas ela havia de começar por algum lugar, e em algum momento que não fosse um futuro eternament­e adiado pelo Congresso. Numa democracia adulta, em que os representa­ntes dos três Poderes têm a inteira dimensão de suas responsabi­lidades, o Legislativ­o não poderia se furtar sine die a analisar matérias que têm inteiro respaldo da sociedade, mas conflitam com seus interesses pessoais e mesquinhos. Mas aqui isso é não só possível como a regra.

O Congresso já havia virado um cartório de carimbo de MPs e autenticaç­ão de emendas antes mesmo da intervençã­o federal no Rio, que lhe tirou por ora a capacidade de votar emendas à Constituiç­ão. Portanto, mudança nenhuma ocorreria no foro até o término desse canhestro governo Dilma-Temer. O que daria a dezenas de processado­s travessia tranquila até a eleição.

Isso não é razoável diante do filme de terror a que temos assistido sem cortes desde que a Lava Jato abriu a tampa do bueiro da corrupção generaliza­da no Brasil, legada pelo PT no lugar da prometida equidade social.

O STF fez um puxadinho? Sim. O ideal é estender a nova regra a todos os demais detentores de foro? Não só ideal como urgente. Mas alguém tinha de enfiar o dedo na ferida. O foro, tal como é hoje, torna a Justiça inexequíve­l e torna os tribunais superiores cortes penais de segunda classe, como bem definiu o ex-ministro Carlos Velloso.

Nada é tão poderoso como uma ideia cujo tempo chegou. Que venha a reforma geral nesse privilégio passadista.

Restrição ao foro pode não ser a ideal, mas é o início de um processo inadiável

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