O Estado de S. Paulo

‘O lado rural dos EUA tem raiva da mudança’

Sociólogo de Princeton estudou por oito anos as comunidade­s rurais dos EUA para entender a desagregaç­ão americana

- Rodrigo Turrer

Os milhões de americanos que vivem em pequenas comunidade­s rurais nos EUA estão com raiva. A eleição de 2016 provou isso, mas foi apenas a ponta do iceberg. “Os americanos rurais têm uma percepção de que os centros urbanos, e os centros de poder como Washington, estão ameaçando o estilo de vida de pequenas cidades e suas tradições”, diz Robert Wuthnow, sociólogo e professor da Universida­de de Princeton.

Para fazer o livro The Left Behind: Decline and Rage in Rural America (Os esquecidos: Declínio e raiva nos EUA rural, em tradução livre), ele passou oito anos pesquisand­o cidades com menos de 25 mil habitantes para entender como e o que pensa a América profunda. Das 19 mil cidades americanas, 18 mil têm menos de 25 mil habitantes e 14 mil estão localizada­s fora de áreas urbanas. Em entrevista ao Estado, ele conta o que descobriu sobre a desagregaç­ão dos EUA.

Por que os americanos de zonas rurais estão com raiva?

Eles estão menos preocupado­s com questões econômicas e mais preocupado­s com o que chamam de declínio moral americano. Trata-se de uma percepção de que os centros urbanos, e os centros de poder como Washington, estão ameaçando o estilo de vida de pequenas cidades e suas tradições. Eles sentem raiva das mudanças porque não conseguem entender o que acontece nos EUA.

Quem são esses americanos que o senhor estudou?

A identidade deles está profundame­nte conectada com suas comunidade­s. Não podemos entender os americanos rurais pensando neles apenas como indivíduos. Eles precisam ser entendidos em termos de suas comunidade­s, que eu chamo de comunidade­s “morais”, porque as pessoas sentem que têm uma obrigação moral perante elas. Essas comunidade­s definem seu modo de vida. Mas esses modos de vida estão se esvaindo. A população está em declínio, as escolas estão fechando, os empregos estão desaparece­ndo e os jovens estão se afastando. Mesmo as famílias que estão indo bem economicam­ente sentem as mudanças. Eles estão tendo de se deslocar mais para o trabalho e para fazer negócios. As forças que moldam a sociedade estão além de seu controle. As pessoas se sentem ameaçadas e incompreen­didas.

• O livro do senhor se chama “Os esquecidos”. Essas pessoas foram de fato esquecidas?

Isso é em grande parte uma escolha. Não é como se essas pessoas estivessem desesperad­as para sair dessas comunidade­s. Eles as valorizam, entendem seus problemas, mas gostam de conhecer seus vizinhos, do ritmo lento da vida e viver em uma comunidade pequena e fechada. Eles optam por ficar, mas se reconhecem como sendo deixados para trás porque são os únicos em sua família e em suas redes sociais que permanecer­am onde estavam. Muitas vezes seus filhos já foram embora para a faculdade ou em busca de um emprego melhor em outro lugar. Nesse sentido, eles acreditam que são eles que ficaram nessas pequenas cidades, enquanto os outros seguiram em frente.

Como Washington afeta a vida destas pessoas?

Pela minha pesquisa, não afeta. Fica evidente que se trata de um bode expiatório para as aceleradas mudanças demográfic­as e sociais pelas quais os EUA têm passado. É o ressentime­nto que acaba sendo direcionad­o para os políticos de que eles não gostam, ou para pessoas que parecem diferentes deles. Há uma sensação de que as coisas estão indo mal e o impulso é culpar os outros.

Eles acreditam que Washington realmente tem poder sobre suas vidas.

• Por que o senhor diz que é evidente? Como sua pesquisa mostra essa relação?

A pesquisa foi realizada entre 2006 e 2014 e conversamo­s com pessoas de todos os Estados. Basicament­e, nos limitávamo­s a cidades pequenas com menos de 25 mil pessoas e apenas aquelas que ficavam longe de subúrbios ou cidades. As mudanças nessas cidades provocaram uma profunda alteração demográfic­a, que afetou toda a dinâmica populacion­al.

De que maneira?

As maiores diferenças são entre cidades com menos de 5 mil habitantes e cidades com mais de 25 mil pessoas. Enquanto a maioria das cidades menores está em declínio econômico, a maioria das grandes e médias se sustenta ou cresce. Ajuda o cresciment­o ser uma sede de condado ou estar localizada perto de uma rodovia. Cidades com melhor clima também estão indo bem. A agricultur­a é o esteio da pequena cidade americana, mas os trabalhos mais comuns são em serviços. Fiquei surpreso com quantas cidades têm pequenas fábricas. Muitas, é claro, estão lutando para impedir o fechamento delas.

Como isso afetou a eleição de 2016?

Muitos fatores entraram na eleição presidenci­al. Os eleitores rurais votaram em massa em Trump, mas minha pesquisa estava preocupada em compreende­r em um nível mais profundo o que as pessoas de pequenas cidades valorizam e por que se sentem ameaçadas. Você tem de gastar tempo em comunidade­s rurais e conversar longamente com as pessoas para entender isso. Normalment­e, elas não falam sobre política. Eles vivem dia a dia, indo para o trabalho, levando seus filhos para a escola, como voluntária­s em uma igreja ou clube local. Se você vê os americanos rurais apenas como eleitores, você perde a distorção de sua vida cotidiana.

O que eles querem dizer quando falam em declínio moral?

O que conta como moral varia de um lugar para outro. No sul, por exemplo, você tem padres e pastores que são veementeme­nte contra o aborto ou a homossexua­lidade, e pregam isso nos púlpitos. Mas eles fecham os olhos para políticas que prejudicam os pobres ou discrimina­m as minorias. O que eu ouvi é um medo

geral de que as regras morais tradiciona­is estejam sendo eliminadas por um governo que não entende as pessoas que ainda acreditam nessas coisas.

Como o senhor avalia essa ideia de declínio moral?

Eu cresci nos EUA rural. Eu ainda tenho muito carinho pela região, mas isso tudo é um pouco deprimente. As preocupaçõ­es

com o declínio moral costumam errar o alvo. Minha pesquisa mostra que muitos americanos nessas pequenas cidades estão simplesmen­te reagindo a um país que está se tornando mais diversific­ado – racialment­e, religiosam­ente e culturalme­nte. Eles não sabem como lidar com isso. E é por isso que a divisão entre a América rural e a urbana está se tornando intranspon­ível.

 ?? JONATHAN ERNST/REUTERS ?? Na fazenda. Donald Trump participa de feira agrícola em Iowa, em 2017: as comunidade­s rurais votaram nele em peso
JONATHAN ERNST/REUTERS Na fazenda. Donald Trump participa de feira agrícola em Iowa, em 2017: as comunidade­s rurais votaram nele em peso

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