Colômbia preparada
Ninguém jamais me explicou porque os colombianos falam o melhor espanhol de toda a América Latina. Não me refiro à elite culta, mas aos homens e mulheres comuns que se expressam com uma notável precisão e eloquência, além da riqueza de vocabulário. É verdade que a Colômbia teve gramáticos e linguistas excepcionais desde o século 19 e, certamente, conhecer a língua e saber usá-la deve ter sido, há muito tempo, o foco dos seus programas escolares.
Outro fato notável e surpreendente desse país é que, apesar de ter sofrido por mais de 50 anos com guerrilhas sanguinárias, ligadas ao narcotráfico, algo que em qualquer outra nação latino-americana teria provocado um golpe de Estado e uma ditadura militar, a Colômbia continuou uma democracia, com liberdade de imprensa, eleições livres e juízes mais ou menos independentes.
Quando o presidente Juan Manuel Santos e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) iniciaram negociações de paz, o mundo inteiro comemorou o fato e mais ainda quando, depois de uma longa discussão, ambas as partes chegaram a um acordo que parecia por um fim à guerra interminável.
Por isso, o mundo inteiro (eu também) teve uma enorme surpresa quando, no referendo que deveria consolidar o acordo, os eleitores colombianos o rechaçaram, respaldando aqueles, como o ex-presidente Álvaro Uribe, que se opuseram a ele achando que o governo havia feito concessões excessivas à guerrilha, sobretudo no que diz respeito aos crimes, sequestros e torturas de suas vítimas, praticados pelos guerrilheiros.
Acabo de passar alguns dias na Colômbia, onde serão realizadas eleições no dia 27, e os acordos de paz têm sido o ponto nevrálgico dos debates. Fiquei impressionado com a virulência dos ataques ao presidente Santos pelos oponentes dos acordos firmados, que o acusam de ter feito concessões exageradas a uma guerrilha desalmada, sustentada pelo narcotráfico e que deixou dispersas pelo país dezenas de milhares de famílias de vítimas.
E as críticas parecem contar com o respaldo de um grande segmento da opinião pública. Um exemplo pode dar uma ideia do volume de tais críticas: Humberto de la Calle, que foi o chefe da delegação negociadora do governo e agora é candidato pelo Partido Liberal, tem uma porcentagem ridícula nas pesquisas de intenção de voto, oscilando entre 3% e 4%. Por outro lado, Iván Duque, candidato do Centro Democrático, partido de Uribe, que tem como vice-presidente Marta Lucía Ramírez, de origem conservadora, lidera as pesquisas com 10 pontos porcentuais à frente do seu adversário mais próximo, o esquerdista Gustavo Petro, ex-prefeito de Bogotá.
Creio que, com o tempo, a história reconhecerá o mérito de Juan Manuel Santos e uma maioria de colombianos terminará aceitando que foi oportuno e corajoso iniciar aquelas negociações para pôr um fim a uma guerra que vinha arruinando o país e obstruindo seu progresso, um anacronismo em uma época como a nossa em que pelo menos uma coisa ficou clara: não é com tiros, assassinatos, sequestros e tráfico de drogas que se acaba com a pobreza, as desigualdades e as injustiças em uma sociedade.
Não há um único exemplo provando o contrário, mas muitos que comprovam o oposto: se as Farc tivessem triunfado, teriam feito da Colômbia uma segunda Cuba ou uma segunda Venezuela, ou seja, uma ditadura brutal e paupérrima.
Com todas as deficiências nesses acordos apontadas por uma maioria de colombianos, eles serviram para deixar uma coisa bem evidente: apesar do que a propaganda revolucionária e extremista fez acreditar, as Farc, longe de representar o “povo”, são uma organização subalterna e temida e ao mesmo tempo desprezada.
A população colombiana em sua imensa maioria as repudia e, em vez de aplaudir sua incorporação à vida política do país, vê isso com ódio e temor. Por isso, o candidato presidencial da antiga guerrilha, Rodrigo Londoño (Timochenko), teve de renunciar a sua candidatura e os únicos parlamentares das Farc no novo Congresso serão aqueles a quem os acordos de paz asseguram um assento, apesar de os votos dos eleitores os terem rechaçado. Iván Duque lidera as pesquisas na Colômbia
Os acordos de paz não teriam sido possíveis sem os duros golpes que o governo de Álvaro Uribe desferiu contra a guerrilha, um governo do qual Juan Manuel Santos foi um enérgico ministro da Defesa.
“Faltou muito pouco para acabar com as Farc”, disse-me um amigo. Não sei se é certo, mas é verdade que, sem aqueles sérios reveses sofridos pela guerrilha, causados pelo governo anterior, que devolveram a confiança e recuperaram as estradas e boa parte do território ocupado pelos guerrilheiros, eles jamais teriam concordado em negociar.
O que deve ocorrer agora? Se as pesquisas forem mais ou menos exatas, Iván Duque deve vencer a eleição confortavelmente – talvez no primeiro turno. Apesar da sua juventude, é um homem capaz e, além da sua formação econômica e experiência financeira em organizações internacionais, é uma pessoa culta, que não se envergonha de ler poesia e romances. E tem como vice uma mulher que conheço e não hesito em afirmar que é admirável: Marta Lucía Ramírez.
O risco do populismo e do extremismo de Gustavo Petro parece descartado. Duque e Ramírez não propõem invalidar os acordos de paz, mas aperfeiçoá-los. Não será fácil a tarefa do futuro governante desse país com uma índole democrática tão sólida. Há um milhão de venezuelanos que, fugindo da fome, do desemprego e da repressão que transformaram seu país em um inferno, fugiram para a Colômbia, que os acolheu generosamente.
Mas, entre esses exilados, Maduro, seguindo o exemplo de Fidel Castro quando da famosa emigração em massa de cubanos que partiram do Porto de Mariel, aproveitou para esvaziar suas prisões de criminosos e foragidos e os animou a fugir para o país vizinho. Dessa maneira, deixa espaço para encher as celas de opositores democratas que se multiplicam a cada dia, enquanto a Venezuela desmorona na miséria e no caos, e castiga um país vizinho que abriu os braços às vítimas da sua demagogia e desvarios.
Não só a Venezuela necessita se desvencilhar o quanto antes de Maduro e a camarilha que o acompanha em seus desmandos, mas também a Colômbia e o restante da América Latina que sofrem do mesmo modo com a tragédia que vive a terra de Bolívar.
Os acordos de paz com as Farc têm sido o ponto central dos debates eleitorais na Colômbia