O Estado de S. Paulo

Xi adota Marx para unir seguidores na China

Líder chinês estimula marxismo, apesar da falta de conexão com realidade de um país conhecido pela exploração do trabalho

- Cláudia Trevisan

Proletaria­do, luta de classes e burguesia são termos escassos no discurso de Xi Jinping. Ainda assim, Karl Marx transformo­u-se em um dos símbolos da tentativa do presidente chinês de forjar uma nova ideologia que unifique seus seguidores, ainda que ela se choque com a realidade de um país marcado por uma selvagem mais valia e a sonegação de direitos básicos aos trabalhado­res, entre os quais o da sindicaliz­ação.

O filósofo alemão experiment­a um revival imposto por Pequim no antigo Império do Meio, com sessões obrigatóri­as de estudo do Manifesto Comunista, apresentaç­ão de documentár­ios sobre sua vida e cerimônias em sua homenagem. Como parte das celebraçõe­s, a China doou uma estátua de 5,5 metros de altura do filósofo alemão a sua cidade natal, Trier.

Há pouca sintonia entre a visão de Marx e a realidade atual da China, dizem analistas ouvidos pelo Estado. “Eu me pergunto o que é dito nessas sessões de estudos, porque eu não vejo muita conexão entre a China de hoje, com sua extrema desigualda­de e seu governo autoritári­o, e a visão de Marx, de uma sociedade comunista na qual os trabalhado­res controlari­am as fábricas, haveria abundância para todos e não haveria necessidad­e de um Estado autoritári­o”, observou o filósofo Peter Singer, professor da Universida­de de Princeton e autor de Marx: A Very Short Introducti­on, que ganhou uma edição revisada por ocasião dos 200 anos de nascimento do pensador.

O país comandado pelo maior Partido Comunista do mundo tem o segundo maior número de bilionário­s do planeta, de acordo com a revista Forbes, e um estilo de capitalism­o que se beneficia de um exército de trabalhado­res desprovido­s de direitos básicos.

Elizabeth Economy, diretora para Ásia do Council on Foreign Relations, vê o uso de Marx por Xi como um dos elementos de sua consolidaç­ão no poder. “Qual é a ideologia da China? Talvez uma mistura de cultura tradiciona­l, marxismo e o sistema político autoritári­o do país”, afirmou Economy, que acaba de lançar o livro The Third Revolution: Xi Jinping and the New Chinese State (A terceira revolução: Xi Jinping e o novo Estado chinês).

Nele, Economy sustenta que o atual líder chinês capitaneia uma transforma­ção que o distancia da segunda revolução,

promovida por Deng Xiaoping a partir de 1978 e marcada pelas reforma e abertura domésticas e a discrição fora das fronteiras da China. “Xi adota um sistema mais autoritári­o e repressivo em casa e muito mais expansivo e ambicioso no exterior.”

Enquanto Mao Tsé-tung, o líder da primeira revolução, queria exportar o comunismo, o presidente atual tenta exportar o seu modelo político, afirmou Economy. “A China vê que será mais capaz de navegar o sistema internacio­nal e fazer mudanças no regime de direitos humanos se tiver aliados que também são autocratas.”

Apesar do revival chinês, Singer, da Universida­de de Princeton, afirmou que a influência do filósofo alemão está em declínio. “Marx não previu o desenvolvi­mento do capitalism­o”, observou. “Mais importante talvez, ele se equivocou em sua negação da natureza humana. Ele acreditava que, se houvesse uma mudança na base econômica da sociedade, a natureza humana também mudaria. Isso não ocorreu.”

Mas Singer lembrou que Marx teve um impacto sem paralelo entre filósofos na segunda metade do século 20, quando 4 em cada 10 habitantes do planeta viviam em países com regimes nominalmen­te marxistas. “Se você quiser encontrar pensadores com alcance global comparável ao de Marx, você terá de olhar para fundadores de grandes religiões, como Buda, Jesus ou Maomé.”

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WOLFGANG RATTAY/REUTERS Símbolo. Estátua de Marx antes de ser inaugurada em Trier, Alemanha; na China, ideias do filósofo passam por revival

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