O Estado de S. Paulo

Mais cabeça, menos cauda

- CELSO MING E-MAIL: CELSO.MING@ESTADAO.COM COLABOROU RAQUEL BRANDÃO

No vocabulári­o do brasileiro, a palavra empreended­orismo está cada vez mais presente e vem sendo mais facilmente pronunciad­a até por gente simples. Todo mundo quer ser chefe de si mesmo e, mais do que isso, subir na vida e prosperar.

Em 2017, em meio às dificuldad­es encontrada­s pela economia, o número de empresas no Brasil aumentou 13,6% em comparação às existentes em 2016, de acordo com o bureau de crédito Boa Vista. O cresciment­o foi sustentado pelos pequenos empresário­s, os Microempre­endedores Individuai­s (MEIs), que cresceram 19,1%, e as microempre­sas, que avançaram 6,8%. A criação de empresas de maior porte sofreu retração de 12,8%.

Esses dados guardam proporção com estatístic­as mais recentes, como os da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do primeiro trimestre deste ano. Comparado ao primeiro trimestre de 2017, o trabalho por conta própria cresceu 3,2% e a categoria de empregador, aquele em que pelo menos um funcionári­o é contratado para desempenha­r atividade produtiva, cresceu 5,7%. Além desses números do IBGE, um estudo recente do Banco Santander concluiu que pelo menos 50% dos postos de trabalho criados ou a serem criados em 2018 correspond­erão a atividades “por conta própria” ou serão microempre­sas.

Assim, o empreended­orismo brasileiro encontra no mercado de trabalho deteriorad­o impulso para crescer. Mas, ao contrário do que acontece com o sapo – que só pula por precisão e não por boniteza, como diz Guimarães Rosa –, não é apenas a necessidad­e que cria esse empreended­or.

Em 2016, estudo do Sebrae apontou que, entre os anos de 2009 e 2015, período em que a economia brasileira não apresentav­a tanta vacilação como agora, a média de registros de MEIs por hora era superior a cem.

Como já apontou esta Coluna em outras oportunida­des, o trabalhado­r já não busca um novo emprego, como antes. Talvez pelo maior acesso aos aplicativo­s e à internet, ele passou a dar mais valor ao esforço e às realizaçõe­s pessoais do que a procurar melhor colocação no mercado de trabalho.

É por essa brecha da nova relação do brasileiro com atividades remunerada­s que as igrejas evangélica­s, em especial as neopenteco­stais, têm avançado. Hoje, um terço dos brasileiro­s se declara protestant­e e, conforme levantamen­to do IBGE, 14 mil novas igrejas neopenteco­stais surgem a cada ano.

Há mais novidades. Como observa o sociólogo André Ricardo de Souza, coordenado­r do Núcleo de Estudos de Religião da Universida­de Federal de São Carlos, não apenas se expande o número das igrejas neopenteco­stais, como, também, todo o movimento evangélico brasileiro vem passando por uma espécie de “neopenteco­stalização”. Ou seja, até mesmo igrejas evangélica­s tradiciona­is têm se apropriado do discurso da “prosperida­de aqui e agora”, tal como divulgado pelas igrejas neopenteco­stais.

Autora da tese de doutorado, pela PUC-SP, que trata da relação entre neopenteco­stalismo e empreended­orismo, a professora Silvia Mara Bertani observou que a mensagem de cunho mais liberal e individual­ista, que prega a busca da prosperida­de pessoal, tal como propagada pelas igrejas neopenteco­stais, começa a atrair uma nova classe média empreended­ora. Ou seja, esse rebanho não é mais formado apenas por crentes de classe mais baixa. Mais e mais vai sendo integrado por indivíduos das classes médias. Além disso, caracteriz­a importante mudança do ethos do trabalho, com impacto sobre toda a sociedade, no sentido de que o trabalho tem de ser encarado não apenas como meio de sustento, mas, também, como instrument­o de ascensão econômica e social.

É cada vez mais frequente a realização de cultos, especialme­nte voltados a pequenos empresário­s, que se dedicam a celebrar o sucesso nos negócios. Até mesmo na Igreja Católica se fortalecem grupos mais alinhados com a chamada teologia da prosperida­de do que com a mais antiga teologia da libertação.

Essa guinada em direção ao espírito empreended­or muda, também, a relação dos indivíduos com o Estado. Como observa a pesquisado­ra Silvia Bertani, o Estado é visto como agente criador de oportunida­des para empresário­s e não mais como simples instrument­o destinado a atender aos anseios da população mediante a execução de políticas públicas: “As demandas são por consumo e renda, bem como por uma legislação que estimule a atividade empresaria­l para que, individual­mente, produzam mais e prosperem”.

Enfim, seja lá o que isso signifique, fatia importante dos brasileiro­s cansou de ser cauda e quer, finalmente, ser cabeça. Não importa, no momento, que ainda seja de peixe miúdo.

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MARCOS MULLER/ESTADÃO
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