O Estado de S. Paulo

POETAS NO EXÍLIO

- Martim Vasques da Cunha

Na coletânea de entrevista­s A Musa no Exílio (Editora Âyiné), o poeta russo, naturaliza­do americano, Joseph Brodsky (1940-1996) escuta a seguinte pergunta: “Você acha que ser exilado contribuiu para seu interesse de observar a língua com algum distanciam­ento?” Sua resposta é: “Acho que ajudou. Quando vim para cá, disse a mim mesmo para não fazer dessa mudança um grande acontecime­nto – para agir como se nada tivesse acontecido. E eu agi assim. E ainda ajo, creio, para seguir em frente. No entanto, durante os dois ou três primeiros anos, senti que estava atuando em lugar de viver. Bem, atuando como se nada tivesse acontecido. Atualmente, acho que a máscara e a face colaram-se uma à outra. Eu simplesmen­te não sinto e não consigo distingui-las”.

Quem sobrevive no exílio, seja exterior ou interior, precisa criar uma estratégia idiossincr­ática – a de elaborar uma máscara (persona, no latim) que proteja a sua verdadeira identidade. Brodsky sabia disso como poucos. Sobreviven­te da União Soviética totalitári­a e de uma América acolhedora, porém feroz na caçada pelo sucesso a qualquer custo, ele reconhecia que a musa poética era “uma face incomum”. “Independen­te de alguém ser escritor ou leitor”, escreve, “a tarefa consiste, em primeiro lugar, em dominar a sua própria vida, sem a imposição e prescrição de terceiros”, pois, como arremata em Sobre o Exílio (Âyiné), ninguém descerá à cova conosco exceto nós mesmos.

Para manter o relacionam­ento com essa “face incomum”, Brodsky teve de criar a persona de um poeta temperamen­tal, boêmio, talvez um pouco mulherengo, sempre pronto para dizer uma boutade polêmica. Na verdade, era alguém completame­nte atormentad­o por não conseguir rever tanto seu país natal como Andrei, seu único filho. A obsessão que tinha pela obra de W.H. Auden mostra que, afinal de contas, ele jamais conseguiu o equilíbrio entre a razão e as emoções que fundamenta os alicerces de um grande poema, apesar dos louros do Nobel de literatura dado em 1987. Não à toa, seu triste fim jamais foi visto por seus colegas como um fim – e sim como uma interrupçã­o.

Poeta contemporâ­neo de Brodsky (e também vencedor do Nobel, em 2011), o sueco Tomas Tranströme­r (1931-2015) entendia igualmente o exílio como a forma mais brutal de interrupçã­o. Neste caso, ele tornou-se um exilado em seu próprio corpo ao ser vítima de um derrame em 1990, paralisand­o o seu lado direito. Mesmo assim, Tranströme­r nunca deixou que a sua poesia fosse interrompi­da, como bem observou Marcia Sá Cavalcante Schuback, tradutora e organizado­ra da coletânea Mares do Leste (Âyiné). Continuou a escrever – e a tocar piano, sua outra grande paixão – com a mão esquerda, moldando uma persona plácida e serena diante das outras interrupçõ­es que o mundo o obrigou a suportar, com versos aparenteme­nte distantes, mas que, no fundo, sempre retornavam àquela experiênci­a marcante, registrada logo no primeiro verso do seu poema de estreia, em 1954 – a de que acordar para a luz do dia era um “saltar de sonhos com paraquedas”.

Essa resistênci­a contra as interrupçõ­es típicas de quem vive no exílio é também a marca registrada da obra do escritor brasileiro Juliano Garcia Pessanha. Ao mesmo tempo, poucos souberam usar com tamanha habilidade a estratégia das máscaras como ele. Em seus livros anteriores – o chamado “quarteto da angústia”, composto por Sabedoria do Nunca, Ignorância do Sempre, Certeza do Agora e Instabilid­ade Perpétua, todos reunidos no volume único Testemunho Transiente –, Pessanha se apropriou da filosofia de Martin Heidegger, dos aforismos de Emil Cioran e da poesia dos portuguese­s Fernando Pessoa, Herberto Helder e Sophia de Mello Breyer Andersen para criar um gênero único na literatura nacional. Trata-se da “heterotana­tografia”, uma biografia que mistura ficção, ensaio e versos para meditar sobre uma existência que parte da morte para entender a vida – e não do seu inverso, como fazem as autoficçõe­s que pululam por aí no mercado editorial. Neste jogo de esconde-esconde, Pessanha constrói a sua persona de “pastor do ser”, o escritor angustiado que tem uma mensagem para transmitir ao homem comum, mas é absolutame­nte incapaz de resolver a vida nos termos mais práticos.

Este paradoxo – que, para o próprio Juliano, tem toques de tragicoméd­ia – é finalmente rompido em Recusa do Não-Lugar (Ubu), um livro extremamen­te corajoso, no qual o autor não tem o mínimo pudor de destruir as máscaras que construiu para suportar o seu exílio interior – e perceber que, ao contrário do que praticaram Brodsky e Tranströme­r para suportar a interrupçã­o do desterro, toda a sua literatura anterior não passava de um fracasso completo. Todavia, é neste rompimento que se encontra a sua maior vitória. Ao superar a influência de Heidegger, absorvendo a filosofia acolhedora de outro alemão, Peter Sloterdijk, Pessanha recupera a “face incomum” da poesia ao perceber que adquirir uma certa leveza ao lidar com o mundo não significa ser completame­nte vazio. A abstração conceitual (e extremamen­te sofisticad­a) dos livros anteriores é substituíd­a por uma procura pelo concreto, sem prejuízo do rigor filosófico, no qual será encontrado não somente com as leituras de Nietzsche, mas também com as

de Adam Smith, aliado improvável de um escritor que, para pagar as contas, não tem vergonha de ser taxista no período noturno – além de admitir que, antes, o “pastor do ser” era nada mais nada menos que um “Mestre Eckhart de shopping center”.

Será neste equilíbrio adquirido às duras penas que talvez fique nítida que a verdadeira influência de Pessanha nunca foi Heidegger ou Sloterdijk, e sim ninguém menos que a poeta lusitana Sophia de Mello Breyner Andersen, novamente redescober­ta por essas plagas com a coletânea Coral e Outros Poemas (Companhia das Letras). Sem dúvida, Sophia é também uma artista do exílio – mas ela consegue viver dentro dele sem usar nenhuma espécie de máscara, o que é algo admirável. Logo no início da sua obra, seus versos reconhecem que “apesar das ruínas e da morte,/ onde sempre acabou cada ilusão,/ a força dos meus sonhos é tão forte,/ que de tudo renasce a exaltação/ e nunca as minhas mãos ficam vazias”. Sophia não vê o exílio como um fardo, e sim como uma bênção – e, por isso, não precisa de disfarces, de apropriaçõ­es, de aliados. Sua única amiga é a poesia. Ela lhe dá a chance de ser Orfeu e Eurídice, Ulisses e Penélope ao mesmo tempo, sem nenhuma perda da sua própria identidade. Mas a percepção de que “o reino dividido” é algo sempre permanente a faz ir além das interrupçõ­es que poderiam consumi-la – e é então que a poesia de Sophia e a literatura de Pessanha se unem de maneira única, ao descobrire­m que, quando se vive no exílio, o artista jamais deve se ver como uma vítima.

Pois esta foi a última lição de Joseph Brodsky antes de morrer de um ataque cardíaco fulminante em 1996. Como ele bem descreveu, uma vez que todos nós vivemos na condição de exilados, independen­te da geografia, jamais podemos ser orgulhosos, na crença tola de que a literatura é o suficiente para substituir a vida. Mas o fato é que a poesia e a filosofia não libertam ninguém – é o que nos diz Juliano Garcia Pessanha, que ficou próximo de seguir os passos do poeta de A Part of Speech, ao ser o alvo quase fatal de um coração interrompi­do, como ele relata em Recusa do Não-Lugar no capítulo mais comovente do livro. Entretanto, Juliano aprendeu, ao incorporar para si a tradição dos versos de Brodsky, Tranströme­r e Sophia, que um homem livre reafirma a sua liberdade aceitando naturalmen­te as interrupçõ­es da nossa existência. Ele não culpa ninguém quando enfim se reencontra com a “face incomum” da musa que amarra as pontas da vida e da arte. Esta é a lição mais difícil que alguém pode aprender – e, neste caso específico, foi cumprida à perfeição.

É AUTOR DE ‘CRISE E UTOPIA – O DILEMA DE THOMAS MORE’ (VIDE EDITORIAL) E ‘A POEIRA DA GLÓRIA – UMA (INESPERADA HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA’ (RECORD); PÓS-DOUTORANDO PELA FGV-EAESP

Três livros são lançados ao mesmo tempo sobre um tema árido: a criação literária de escritores fora da terra natal, como o Nobel Joseph Brodsky

 ?? SARA KRULWICH/THE NEW YORK TIMES ?? No teatro. O bailarino russo Mikhail Baryshniko­v interpreta poemas do conterrâne­o Joseph Brodsky, morto em 1996, em espetáculo montado em 2016 no New Riga Theatre de Nova York
SARA KRULWICH/THE NEW YORK TIMES No teatro. O bailarino russo Mikhail Baryshniko­v interpreta poemas do conterrâne­o Joseph Brodsky, morto em 1996, em espetáculo montado em 2016 no New Riga Theatre de Nova York
 ?? SCANPIX SWEDEN ?? Brutal. O sueco Tomas Tranströme­r tornou-se exilado em seu próprio corpo após derrame
SCANPIX SWEDEN Brutal. O sueco Tomas Tranströme­r tornou-se exilado em seu próprio corpo após derrame
 ?? AMERICAN CULTURAL CENTER ?? Brodsky. Ele criou persona para sobreviver
AMERICAN CULTURAL CENTER Brodsky. Ele criou persona para sobreviver
 ??  ?? A MUSA NO EXÍLIO
AUTOR: JOSEPH BRODSKY
TRADUÇÃO: DIOGO ROSAS
EDITORA: ÂYINÉ
411 PÁGINAS
R$ 69
A MUSA NO EXÍLIO AUTOR: JOSEPH BRODSKY TRADUÇÃO: DIOGO ROSAS EDITORA: ÂYINÉ 411 PÁGINAS R$ 69
 ??  ?? MARES DO LESTE AUTOR:
TOMAS TRANSTRÖME­R
TRADUÇÃO: MARCIA SÁ CAVALCANTE SCHUBACK
EDITORA: ÂYINÉ
232 PÁGINAS
R$ 59
MARES DO LESTE AUTOR: TOMAS TRANSTRÖME­R TRADUÇÃO: MARCIA SÁ CAVALCANTE SCHUBACK EDITORA: ÂYINÉ 232 PÁGINAS R$ 59
 ??  ?? RECUSA DO NÃO-LUGAR
AUTOR: JULIANO GARCIA PESSANHA EDITORA:
UBU
186 PÁGINAS R$ 42
RECUSA DO NÃO-LUGAR AUTOR: JULIANO GARCIA PESSANHA EDITORA: UBU 186 PÁGINAS R$ 42

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil