GODARD E OS ECOS DE MAIO DE 1968
Ao completar 50 anos, as convulsões sociais e políticas de maio de 1968 ganham uma revisão em perspectiva com o lançamento de Maio de 68 no Cinema, box com quatro filmes que examinam as ocorrências que culminaram nas primeiras manifestações estudantis na Universidade de Nanterre e rapidamente se alastraram pelos quatro cantos do planeta. Focada na produção francesa sobre o assunto, a seleta da Versátil oferece um longo e reflexivo panorama daquele conturbado ano.
A primeira obra do volume é, talvez, esteticamente, a mais palatável. Loucuras de uma Primavera (1990) é uma comédia que se passa durante os primeiros acontecimentos de maio. Milou, o personagem central, precisa sepultar sua mãe, dona de uma vila no interior da França. Ele começa a entender a dimensão dos protestos estudantis quando todos se veem isolados e estagnados pela greve geral no país e pelo bloqueio a estradas e vias. Conforme o tempo transcorre, cada membro da família passa a mostrar seus reais valores e contradições. A preocupação de Louis Malle, o diretor do filme, parece repousar no exame que faz de quão distante estão os anseios pessoais frente a um evento coletivo de grande monta.
Derivado da linguagem documental, os filmes ensaios tornaram-se instrumento de compreensão e expressão em torno dos assuntos relacionados a eventos coletivos. O soviético Dziga Vertov já havia chamado a atenção para o potencial que o cinema apresenta em se tratando de fazer e discutir política. Não à toa Jean-Luc Godard batizou seu coletivo de cinema político Groupe Dziga Vertov, logo após maio de 68. É desse coletivo o mais emblemático filme do box, Tudo vai Bem (1972), dirigido por Godard e Jean-Pierre Gorin.
O filme é o mais ambicioso projeto do coletivo, já que contou com investimento da poderosa Gaumont, o que possibilitou contratar Jane Fonda e Yves Montand, ambos engajados na luta contra a Guerra do Vietnã, as revoluções da classe operária e a renovação da classe política. Aqui, Fonda vive uma jornalista americana correspondente em Paris. Montand vive seu marido, um veterano cineasta da nouvelle vague que não consegue financiamento para seus trabalhos autorais e precisa viver de inconvenientes comerciais para a TV.
Ao tentar uma entrevista com um executivo de um frigorífico cujos funcionários se rebelaram e tomaram todo o local, a jornalista e seu marido acabam reféns dos manifestantes e passam a assistir didaticamente uma sorte de contradições da esquerda revolucionária. Logo, os próprios rebelados passam a agir com o autoritarismo contra o qual pensam lutar. Godard se vale de um humor ácido em cenas didáticas, como no momento em que o diretor precisa urinar com urgência, sendo impedido por seus algozes de usar o banheiro, para
pagar na mesma moeda o fato de que aliviar as necessidades naturais durante a jornada de trabalho era, ali, considerado um ato de procrastinação.
Godard pertence a um espectro de cineastas de vanguarda em que a prepotência estética muitas vezes foi tomada por uma genialidade aferida. Em Tudo vai Bem, no entanto, sua lucidez analítica o fez, junto de Gorin, realizar uma autocrítica da esquerda, uma psicanálise – a verborragia do filme parece mirar o divã do espectador – às vezes fria, às vezes sarcástica e violenta. A cena final – um longo e esmerado plano-sequência que passeia pelos caixas de um supermercado multinacional – é a síntese da adesão compulsória à economia do mercado e do consumo em massa. Godard pinta o episódio como ingênuo e inútil, algo abatido pela ressaca dos anos seguintes. O diretor também não poupa o próprio meio cinematográfico. A metalinguagem examina falácias comuns nas grandes indústrias sobretudo no que diz respeito a soluções fáceis, como ter vedetes no elenco para garantir o sucesso da fita, ou uma história de amor ser suficiente para fazer uma trama caminhar por si só.
O Fundo do Ar é Vermelho (1977), de Chris Marker, pela primeira vez lançado no Brasil em
sua cópia original, com três horas de duração, é outro filme/ensaio de rara beleza. Marker se vale de colagens de cenas de arquivo para rever o impacto de maio de 1968 à luz das várias revoluções e guerras que sucederiam naquele ano. Da ofensiva do Tent no Vietnã, passando pelo maoismo, pela França, por Praga, e terminando nas revoluções latino-americanas, o filme oferece um catálogo longo e detalhado para se compreender aquele momento. Um filme em que a História, a protagonista, fala por si só.
Assim também é o documentário 1968, de Patrick Rotman, de 2008, portanto com mais distanciamento ainda, que analisa os fatos com maior objetividade, guarnecido por farto material de época. De uma maneira abrangente, Maio de 68 no Cinema explora visões opostas e delicadas sobre o ímpeto da juventude naqueles dias de transgressão. Deixa claro, ainda, que o impulso da renovação mina a si mesmo, quando conduzido de maneira pouco uniforme e tomada de paixões irrestritas.
✽
É MESTRE E DOUTORANDO EM ESTÉTICA E HISTÓRIA DA ARTE (USP). AUTOR DE 'CORPOCÁRCERE' E 'ZERO NAS VEIAS'
Box lançado pela Versátil reúne quatro revolucionários exemplos do cinema feito na época, dirigidos por Godard, Louis Malle e Chris Marker