NO BRASIL, CONFRONTO FOI COM A DITADURA
Há meio século, o cinema nacional viu surgir ‘O Bandido da Luz Vermelha’ e o tropicalismo refletiu a resistência popular contra o regime militar
Assim como o século 20 só começou em 1914, com a 1.ª Guerra Mundial, o ano de 1968 só teria começado com as agitações de maio, que na verdade tiveram início em fevereiro (na França) e em março (no Brasil). Em Paris, com uma crise na Cinemateca Francesa; no Rio, com o assassinato de um estudante. Se valem marcos positivos – e por que não valeriam? – tiro dois da cartola: a Ofensiva do Tet, no penúltimo dia de janeiro, quando os vietcongues começaram a “virar” a guerra no Vietnã, e um manifesto do jovem (22 anos) crítico paulista Rogério Sganzerla, Cinema Fora da Lei, escrito enquanto rodava O Bandido da Luz Vermelha.
Com o manifesto e seu filme, o cinema brasileiro acendeu a primeira fogueira da conflagração cultural da temporada, marcada por atos, fatos, feitos e desfeitos de consequências duradouras. Da crescente politização dos filmes à eclosão do Tropicalismo; da primeira montagem de O Rei da Vela à invasão, por 90 trogloditas do CCC (Comando de Caça aos Comunistas), de outro espetáculo de José Celso Martinez Corrêa, Roda Viva, com músicas de Chico Buarque; do colossal show cívico da Passeata dos 100 mil à provocativa bandeira serigrafada (“Seja marginal, seja herói”) de Hélio Oiticica; das primeiras e arrojadas feiras de arte no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro à criação, pelo governo, do Conselho Superior de Censura, que Millôr Fernandes recepcionou com esta tirada: “Se é de censura, não pode ser superior”.
Já na abertura de seu manifesto – um contraponto ao da “estética da fome” de Glauber Rocha – Sganzerla anunciava: “Meu filme é um faroeste sobre o 3.º Mundo”, uma fusão e mixagem de vários gêneros, um filme-soma. Misto de banguebangue urbano com toques de documentário e comédia musical, do noir de Orson Welles e do anarquismo de Godard, O Bandido da Luz Vermelha foi, em outra clave, o Terra em Transe de 68. Acabou justamente premiado no Festival de Brasília, concorrendo com Nelson Pereira dos Santos (Fome de Amor) e uma das melhores e mais politizadas safras do cinema brasileiro moderno.
Brasília 68 foi especialmente agitado e contaminado pela crise institucional protagonizada pelo deputado Márcio Moreira Alves, que despertara a ira dos militares ao sugerir que a população boicotasse os festejos da Semana da Pátria. A Comissão de Justiça da Câmara se recusava a autorizar o governo a processá-lo quando este fez uma aparição relâmpago no festival para conversar com os amigos do cinema e da imprensa – e abafou. Horas depois, o poder verde-oliva impôs-se ao legislativo, baixou o AI-5 e fechou o Congresso.
Apesar dos feitos cinematográficos, da poderosa influência (mesmo in absentia) de Glauber e da agitadora onipresença de Zé Celso, 1968 se consagrou como um ano musical por excelência. O entusiasmo pelos festivais que a TV Record promovera em 1967 ajudou a consolidar a Tropicália liderada por Caetano, Gil e Mutantes, contraponto irracional, anticonvencional e antropofágico do dirigismo programático (e pretensamente brechtiano) do Centro Popular de Cultura, até então hegemônico junto às esquerdas e ao público jovem.
Não sem alguns percalços. Vaiado pela plateia estudantil que lotava o Teatro Tuca, na capital paulista, Caetano, do alto da autoridade moral que lhe dera a recente composição É Proibido Proibir, encarou sem piscar a intolerância. “Mas é isto que é a juventude que diz querer tomar o poder?”, berrou. “Vocês não estão entendendo nada. Nada. Se vocês forem em política o que são em estética...”
Essa guerra cultural entre irmãos – todos vítimas das mesmas forças retrógradas estéticas e ideológicas que mandavam no País – culminaria com um duelo musical, não entre o samba tradicional e as guitarras elétricas tropicalistas, mas entre uma canção lírica e outra de protesto. A brasilidade pura não estava em jogo na final do Festival Internacional da Canção, no Rio. Uma das finalistas, Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque, era a Canção do Exílio de Gonçalves Dias revisitada. A
concorrente, Para Dizer que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré, conquistara a plateia, que a tomou por um hino de protesto contra a ditadura.
Os jurados do festival afinal optaram pelo protesto sutil de Sabiá, escolha recebida com a mais estrepitosa vaia que meus ouvidos já ouviram – e certamente também os de Tom e Chico, que saíram constrangidos. Torci por Sabiá, que o tempo me convenceu ser a mais bela das canções brasileiras. A outra canção acabou proibida pela Censura e Vandré, perseguido pelos militares.
O aziago 1968 tinha tudo para terminar mal, como de fato terminou. Enquanto o Festival da Canção descia a cortina, um enfarte tirava de nosso convívio o mais estimado gozador da imprensa e da TV, Sérgio Porto, vulgo Stanislaw Ponte Preta, o Lalau das “certinhas” e do Febeapá (Festival de Besteiras que Assola o País), aliviando um pouco a barra dos poderosos do dia, vítimas diárias de seu sarcasmo. Em menos de duas semanas, outra perda irreparável para o humor e a cultura: Manuel Bandeira, nosso poeta mais alegre, partia de vez para Pasárgada. 1969 não lhe faria a menor falta.