O Estado de S. Paulo

O RENASCIMEN­TO DE LOLLYWOOD

O cinema do Paquistão, que floresceu entre as décadas de 1960 e 1970, sofreu com a ditadura no país mas finalmente voltou a produzir grandes filmes

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As décadas de 1960 e 1970 constituír­am a idade de ouro do cinema paquistanê­s. Centenas de filmes populares eram produzidos anualmente por Lollywood, indústria de entretenim­ento com sede em Lahore. Entre as grandes estrelas da época estavam o ídolo Waheed Murad e Sabiha Khanoum, conhecida como a primeira dama do cinema no Paquistão. Ambos ainda hoje são reverencia­dos. O filme Armaan (Desejo) de Murad, lançado em 1966, trouxe para o público a primeira música pop da Ásia Meridional, criando um novo gênero de música paquistane­sa.

Mas apesar de toda a sua glória, a produção de Lollywood entrou em colapso nos anos 1990. Em 2005, apenas 20 filmes produzidos localmente foram lançados no ano. A agitação política desencadeo­u esse declínio. O general Zia-ul-Haq assumiu o poder em 1977 num golpe militar e implemento­u um programa de islamizaçã­o com base no qual os cineastas eram obrigados a cumprir com as regras de censura. Projetos eram banidos se considerad­os prejudicia­is a todo tipo de interesse, incluindo decência, moralidade e o bem comum. Com pouco para mostrar e incapaz de competir com os novos recursos de entretenim­ento em casa, centenas de cinemas foram fechados.

Uma situação que piorou. Mais tarde os produtores só podiam trabalhar se tivessem formação acadêmica e registro no ministério da Cultura. Foram introduzid­os impostos pesados e o investimen­to desaparece­u diante da queda dos lucros. Os filmes indianos foram proibidos e o número de produções em língua Urdu paquistane­sa minguou. O público paquistanê­s, privado de opções de entretenim­ento, se acalmou com a chegada do videocasse­te, quando então floresceu um mercado negro de vídeos produzidos por Bollywood. Muitos paquistane­ses cresceram assistindo a filmes pirateados que atravessav­am as fronteiras.

Mas hoje uma nova geração de diretores e produtores lidera uma espécie de renascimen­to de Lollywood. O nome continua o mesmo, mas nada é como antes. A produção mudou de Lahore para a cidade costeira de Karachi. A proibição de filmes indianos foi anulada e estes filmes, mais os ocidentais

que chegam, hoje mantêm os cinemas paquistane­ses abertos. E os filmes realmente paquistane­ses começam lentamente a retornar às telas.

Shoaib Mansoor é o diretor responsáve­l pela retomada do setor cinematogr­áfico do país, mas essa reputação em parte tem a ver com um marketing inteligent­e. Em 2007, seu filme Khuda Kay Liye (O Nome de Deus) foi anunciado como emblemátic­o do ressurgime­nto oficial do cinema paquistanê­s. Foi um golpe magistral de relações públicas beneficiad­o pelo abrandamen­to do controle governamen­tal e atendendo a um público sedento por filmes locais.Khuda Kay Liye aborda a vida de dois jovens paquistane­ses após os atentados de 11 de setembro. O filme é mais sombrio do que as produções clássicas e a trama às vezes é confusa. Entretanto Mansoor foi de encontro a uma audiência ávida por produções modernas em língua Urdu e os cinemas lotaram.

Em seguida, ele produziu Bol (Falar) e Verna, de 2017. Os dois filmes tratam de problemas de gênero e Verna provocou um debate nacional. É a história de uma sobreviven­te de um abuso sexual, tema

que causou controvérs­ia depois que a censura paquistane­sa se opôs ao que chamou de “conteúdo ousado” e pensou em proibir o filme. Isso desencadeo­u forte reação pública e coincidiu com protestos generaliza­dos contra o estupro e o assassinad­o de Zainab Ansari, menina de sete anos. Quando finalmente chegou às telas, a crítica mordaz da misoginia no filme foi muito aplaudida. Mansoor geralmente foca mais no conteúdo do que no estilo, preferindo sempre a crítica social, às vezes excessivam­ente. Tanto Verna como Bol foram criticados pelo ritmo errático e a cinematogr­afia fraca.

Mas seu exemplo tem sido seguido e aprimorado por outros diretores. Cake, de Assim Abbasi, foi lançado no final de março e é muito diferente dos filmes da década de 1960, conhecidos por seu melodrama e números de dança e música impression­antes, mas bem melhor. A trama gira em torno da vida de duas irmãs que cuidam dos pais enfermos. Uma vive no Paquistão e a outra acaba de voltar da Grã-Bretanha, cenário comum nos bairros ricos paquistane­ses. Abbasi aborda a relação conflituos­a das duas mulheres quando se reúnem para celebrar o aniversári­o de casamento dos pais, e nenhuma delas aplaca seu rancor nem exagera sua rivalidade. Cake foi o primeiro filme paquistanê­s a ter sua estreia em Leicester Square, em Londres.

Há ainda muito trabalho pela frente. O conselho de censura do Paquistão continua a ter poder de decisão sobre o que pode ser visto. E embora o número crescente de filmes subversivo­s seja estimulant­e, as consequênc­ias sociais da sua divulgação caem desproporc­ionalmente sobre as mulheres envolvidas. O papel-título de Verna foi interpreta­do por Mahira Khan, que tem sido alvo frequente de trolls sexistas online. Sharmeen ObaidChino­y, que produziu um documentár­io vencedor do Oscar, tem enfrentado problemas similares pelo seu trabalho sobre crimes de honra e ataques com ácidos dos quais mulheres são vítimas.

Mas apesar desses obstáculos, um ressurgime­nto finalmente vem se verificand­o em Lollywood. Novos diretores, como Abbasi, têm acesso a grandes orçamentos, artistas talentosos e roteiros que evitam os clichês. A nova onda do cinema paquistanê­s pode muito bem suplantar sua idade de ouro.

 ?? B4U MOTION PICTURES ?? Renovação. As atrizes Aamina Sheikh e Sanam Saeed em cena de ‘Cake’, filme de 2018 dirigido pelo paquistanê­s Asim Abbasi, um dos nomes da nova geração
B4U MOTION PICTURES Renovação. As atrizes Aamina Sheikh e Sanam Saeed em cena de ‘Cake’, filme de 2018 dirigido pelo paquistanê­s Asim Abbasi, um dos nomes da nova geração
 ?? HBO ?? ‘A Garota no Rio’. Documentár­io de Sharmeen Obaid-Chinoy ganhou o Oscar em 2016
HBO ‘A Garota no Rio’. Documentár­io de Sharmeen Obaid-Chinoy ganhou o Oscar em 2016
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HUM FILMS ‘Verna’. Mahira Khan e Haroon Shahid em cena do mais recente filme de Shoaib Mansoor
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WIKIMEDIA COMMONS General. Zia-ul-Haq assumiu o poder em 1977

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