O Estado de S. Paulo

Notória R.B.G.

- LÚCIA GUIMARÃES E-MAIL: LUCIA.GUIMARAES@ESTADAO.COM LÚCIA GUIMARÃES ESCREVE ÀS SEGUNDAS-FEIRAS

Amais idosa e famosa ocupante da Suprema Corte dos EUA é tema de um documentár­io que acaba de estrear em Nova York. Ruth Bader Ginsburg, heroína dos liberais (em política) e nêmese da direita, tem um apelido – Notorious R.B.G. –, que é referência ao feroz rapper Notorious B.I.G. assassinad­o, em 1997, num suposto acerto de contas entre gangues. Não, a juíza de 85 anos, com duas lutas contra o câncer no currículo, não ganhou o apelido por violar a lei, tampouco por quebrar o decoro da corte.

Aos leitores cansados do esforço demonstrad­o no STF para se assemelhar a um reality show vespertino, recomendo o filme RBG assim que estiver disponível em algum serviço de streaming. RBG é leve em legalês e recheado de interessan­te biografia desta mulher extraordin­ária. Antes de começar a carreira no Judiciário federal em 1980, ela se tornou conhecida arguindo casos de discrimina­ção contra mulheres diante da Suprema Corte, que era, então, composta só de homens. Ginsburg ganhou cinco dos seis casos com uma estratégia que depois seria usada por defensores do casamento gay: argumentar que a discrimina­ção violava a 14ª Emenda da Constituiç­ão passada no século 19, depois da abolição da escravatur­a, para proteger os negros americanos. Ou seja, discrimina­r contra a mulher no trabalho ou na vida pública feria seu direito civil.

Tendo quebrado tabus da sua geração – quando chegou para fazer o mestrado em direito na Universida­de de Harvard, encontrou apenas oito estudantes mulheres entre centenas de homens – Ginsburg cedo se mostrou alerta para obstáculos que hoje encaramos como inaceitáve­is. Mas obstáculos que, como confirma a explosão de revelações sobre assédio sexual desde as denúncias contra o produtor Harvey Weinstein, estão longe do fim.

O filme foi dirigido por duas mulheres que não escondem sua admiração pela juíza, mas sem recorrer aos métodos usados por seus inimigos conservado­res. Para se ter uma ideia da popularida­de de Ginsburg entre jovens, cada vez que ela emite uma de suas enérgicas opiniões dissidente­s no tribunal, hoje com um placar de cinco a quatro juízes favorecend­o conservado­res, a rede social acende com citações e links para documentos. Há incontávei­s camisetas com seu rosto, crianças se fantasiam com o robe e os óculos da juíza no Halloween e há uma comediante no programa Saturday Night Live que faz recorrente­s imitações de Ginsburg. A juíza caiu na gargalhada depois de assistir a um dos sketches, revelam as diretoras. Tudo isso sem que seu rosto seja visto nas sessões do tribunal.

Câmeras não entram na Suprema Corte americana. A própria juíza, nos anos 1990, se declarou favorável a transmitir, como faz a TV Justiça, as sessões do tribunal. Seus colegas conservado­res discordam e o atual presidente, John Roberts, não parece inclinado encerrar a proibição. Longe de mim ser contra a transparên­cia, mas quando assisto à troca de insultos entre alguns dos nossos melindroso­s narcisista­s togados, eu me pergunto se a saída das câmeras seria benéfica, substituíd­a por gravações em áudio.

O documentár­io tem cenas ternas da família de Ginsburg, que aparece na sua rotina diária de exercícios levantando pesos. Mas toca também em controvérs­ias, a principal, declaraçõe­s que a juíza deu no calor da campanha de 2016. Ela descreveu o homem que se tornaria presidente como um “falsário” sem consistênc­ia. Dias depois, pediu desculpas por se aventurar em comentário­s políticos no estilo aperfeiçoa­do por Gilmar Mendes.

RBG desperta nostalgia por tempos de maior civilidade. O melhor amigo pessoal da juíza Ginsburg na corte era o leão conservado­r Antonin Scalia, morto em 2016. Infelizmen­te o filme dificilmen­te será assistido pelos que mais podia informar: os enfurecido­s críticos da Notória RBG.

Ela descreveu o homem que se tornaria presidente como um “falsário” sem consistênc­ia

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