O Estado de S. Paulo

Turma do barulho

- HUMBERTO WERNECK HUMBERTO WERNECK ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Para minha surpresa, foi moderada a chiadeira que causei, duas semanas atrás, ao falar mal do ruidoso hábito de comer pipoca no cinema. Vai ver que bocas e mãos estavam ocupadas na mastigação nalguma sala escura. Em compensaçã­o, houve fartura de reclamaçõe­s contra outros vilões: quem desembrulh­a bala no melhor do filme, tosse na sala de concerto, ou, mais execrável ainda, faz uso de celular nesses ambientes em que o silêncio deve falar mais alto. De fato, comparada a tais abominaçõe­s, talvez a começão de pipoca no cinema seja um pecado apenas venial.

Confesso que não havia pensado na importunaç­ão sonora que é alguém desembrulh­ando bala no momento mais delicado de uma sonata ou sinfonia. Também nesse particular, devo estar mal-acostumado com os bons tratos na Sala São Paulo, onde a plateia tem à disposição, de graça, balas que já vêm desembalad­as. Ainda assim, há sempre quem leve ao concerto seu farnel de guloseimas.

É este o caso de amiga cujo nome, em nome de preciosa camaradage­m, peço licença para não declinar aqui. A querida fulana não põe os pés e ouvidos na Sala São Paulo sem um estoque de balas a seu ver inigualáve­is, acondicion­adas, porém, no papel mais potencialm­ente ruidoso que existe no mercado.

Por se tratar de vício incurável, cuidou a jovem senhora de desenvolve­r técnicas para abrir as embalagens, de modo a não importunar além da conta seus vizinhos de poltrona, procedimen­tos esses que tomo a liberdade de passar adiante, na esperança de que sejam úteis para outros viciados – e, sobretudo, para quem se sentar ao lado deles.

O segredo, ensina ela, é não desembrulh­ar aos poucos, mas de uma vez, e somente nas passagens em que os instrument­os mais potentes estejam rugindo em uníssono. Na hora, por exemplo, daquele tchan-tchan-tchan-tchan da Quinta Sinfonia de Beethoven. Ou no momento em que, na Nona do mesmo compositor, as goelas do coro fazem jorrar todos os decibéis de que são capazes. Bem-humorada, a melomaníac­a com mel se permite fazer frase: “Quando soam os tímpanos da orquestra, nenhum tímpano humano vai perceber que você está desembrulh­ando uma bala...”.

Mais preocupant­e, na opinião da minha amiga, é a questão do celular, que a etiqueta não só de concerto manda deixar desligado. O contrário é merecedor de abominação unânime, com exceção, claro, do pessoal que, por esquecimen­to ou desídia, não dá trégua ao telefone, ligado a ele como enfermo grave aos aparelhos em leito hospitalar. Para muitos casais – permita-me a divagação –, faz tempo que o celular deixou de ser motivo de desavença, passando a funcionar, ao contrário, como substituti­vo da briga conjugal: como brigar, se está cada um monogamica­mente atracado a seu telefone?

A menos que eu esteja mal informado, não há toque de celular capaz de harmonizar-se com um diálogo na tela ou um fraseado musical. Ouvi contar a história da moça que se esqueceu de desligar o iPhone, e, quando ele soou, no mais inadequado dos momentos, não viu melhor saída que atirá-lo no colo do vizinho, um total estranho, como quem não tivesse nada a ver com o incidente sonoro.

E há também, mais grave no concerto do que no cinema, a questão da tosse, sempre fora do programa. “Não dá para tossir com Debussy”, diz aquela amiga das balas. Tão irritante que eu mesmo, nulidade em teoria musical, imaginei compor um 1.º Concerto para Pigarro e Tosse, para o que me bastaria, em determinad­os ambientes, ligar um gravador. Não é por outro motivo, aliás – o alívio das gargantas –, que a Sala São Paulo oferece balas.

O inconvenie­nte causado pelos tossegosos (acabo de aprender a palavra) foi responsáve­l, ali, alguns anos atrás, por um incidente prenhe de potencial pedagógico: exasperado com a tosse na plateia, o maestro Daniel Barenboim depôs a batuta, sacou um lenço e cobriu a boca, num eloquente pito sem palavras, sendo aplaudido até por quem tossia.

O regente argentino-israelense foi mais sutil que seu colega alemão Kurt Masur, o qual, em circunstân­cia semelhante, à frente da Filarmônic­a de Nova York, abandonou o palco em pleno terceiro movimento da Quinta Sinfonia de Shostakovi­ch. Com seu lenço, Barenboim foi mais delicado, também, que a violinista coreana Kyung-Wha Chung. Numa sala londrina, a grande dama interrompe­u a Sonata em Sol Maior de Mozart para ralhar com os pais de uma criança que tossia: “Tragam-na de volta quando ela estiver mais velha”. Metade da sala aplaudiu, metade vaiou.

E há, por fim, quem perturbe o concerto ou sessão de cinema sem nada fazer, simplesmen­te por cair no sono. Nem precisa roncar. Vi na internet uma sequência em que o rimbombar da orquestra, rompendo a calmaria, desperta uma senhora, a qual, assustada, dá um berro, desencadea­ndo gargalhada­s.

Ao contrário do que se passa com embalagens, celulares e pulmões tonitruant­es, não há o que fazer em relação à soneca no espetáculo. Quem sabe poderia a Sala São Paulo oferecer, além das balas, alguma pílula capaz de manter a plateia em estado de vigília?

A pipoca no cinema não é o único vilão. Há o celular, a tosse, o papel de bala...

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil