O Estado de S. Paulo

‘Não há apatia pela disputa política: há desencanto’

Historiado­r fala da crise atual da democracia, adverte que os partidos ‘perderam o chão’ e se diz atento à mobilidade social e às novas formas de atuação na sociedade

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A meio caminho de uma eleição presidenci­al, o Brasil convive, hoje, com dois desafios diferentes, mas que se misturam. De um lado, uma política desmoraliz­ada e uma economia que não deslancha. De outro, a impressão, em muitos setores, de que a democracia não dá mais conta de atender, num mundo globalizad­o e digital, às demandas da sociedade.

Já entrado em seus 90 anos, o historiado­r Boris Fausto, que viu de perto o intenso sobe desce da democracia brasileira ao longo do século 20, admite: os dois desafios são reais. Mas acrescenta: “A sociedade não tem apatia pela disputa eleitoral. Ela tem é desencanto.”

E ele vê cenários novos pela frente. “Assistimos à emergência de uma nova classe média ligada aos serviços, à tecnologia, aos pequenos negócios – e ela vai ter um peso político no futuro”, diz nesta entrevista a Gabriel Manzano. Esses grupos, segundo ele, “vão ocupar o antigo espaço das classes médias hoje envelhecid­as”. A seguir, os melhores trechos da conversa.

As altas taxas de votos nulos e brancos nas pesquisas coincidem com uma onda de teses em que a democracia é acusada de não conseguir atender às demandas de uma sociedade digital e globalizad­a. Vê relação entre os dois? Não dá para falar da democracia no Brasil sem falar de uma crise que temos no sistema democrátic­o no mundo ocidental inteiro. Ele viveu, de um século para cá, altos e baixos. Primeiro a fase de ascensão da liberal democracia até a crise nos anos 20, depois as etapas de regimes autoritári­os, inclusive no Brasil. Nazismo, fascismo e estragos da Segunda Guerra Mundial foram seguidos de novo período de êxito do sistema democrátic­o. Por aqui houve um hiato com o regime militar e enfim a redemocrat­ização, que trouxe muitas esperanças, até exageradas. No entanto, a crise que temos hoje é diversa das outras. É mais profunda, representa uma virada.

Por que uma virada?

O discurso mudou. O que se diz, agora, é que a democracia não está dando conta. E por que isso acontece? Porque a estrutura da sociedade mudou. Não falo de princípios morais ou de comportame­nto. Falo no sentido de que não há mais um sistema fabril industrial como o do passado. As classes, tal como existiram naquela fase, desaparece­ram. Hoje temos mais uma sociedade de massas do que de classes. E isso resultou, no nosso caso, numa crise dos partidos.

Como definiria essa crise? Comecemos lembrando que o Brasil nunca teve coesão social, a consistênc­ia e a fidelizaçã­o de um grupo a uma ideia – enfim, partidos que de fato “representa­ssem” grupos. Mas em décadas passadas, bem ou mal os partidos tinham alguma fisionomia ideológica e de classe. Havia três grandes legendas, PSD, PTB e UDN. Era Juscelino contra Lacerda... A disputa representa­va, sem erro, a dinâmica social. Hoje são tantos partidos e nenhum tem de fato um chão na sociedade. Não representa­m os representa­dos. Levam a uma desmoraliz­ação total da democracia.

A que atribui essa decadência? Aconteceu um grande erro cometido pelo Supremo Tribunal Federal – o de ter derrubado lá atrás a cláusula de barreira e permitir o aparecimen­to de dúzias de partidos. Mas o fenômeno é mais amplo. A sociedade mudou, e também a política. No passado pelo menos havia limites que ninguém se atrevia a ultrapassa­r, eticamente falando. No atual regime partidário se troca de legenda por tudo ou por nada, para vender apoio, comprar conforto. Implantou-se uma corrupção sistêmica como nunca se viu.

Há duas críticas básicas quanto ao regime democrátic­o: que parte da sociedade não se interessa por política e que desafios cruciais – meio ambiente, explosão demográfic­a, poder financeiro, crime organizado – são hoje de ordem planetária. O que pensa disso?

É fato que os Estados nacionais não dão mais conta dessa realidade mundial. O descompass­o é claro e isso põe as democracia­s contra a parede. A realidade da globalizaç­ão tromba com a estreiteza dos Estados nacionais e isso vale não só no universo da política mas para todos os outros. Mas dizer para onde isso aponta seria mero exercício de adivinhaçã­o. E fica ainda mais complicado com a vitória de um Donald Trump e sua política, apoiada por uma massa que não quer ver essa realidade.

Como se resolveria?

Talvez com a criação de organismos internacio­nais que tivessem poder de decisão. Mas a experiênci­a da ONU revela também os limites disso. A instituiçã­o vive paralisada por um mundo de vetos. Os cinco países do Conselho de Segurança adquiriram o poder de impedir qualquer coisa que não lhes agrade. Imagino aqui duas hipóteses. Uma otimista: nós vamos ter de chegar lá, porque os fatos vão se impor. Veja como os chineses estão se virando para enfrentar a calamidade da poluição. A hipótese pessimista é o que já disse Claude LéviStraus­s: que um dia o mundo vai acabar (risos).

Outra cobrança é que a democracia ficou muito lenta ante o avanço da cultura digital. Estas enfraquece­ram as formas tradiciona­is de organizaçã­o e luta política. Concorda? Sim, e o quadro das eleições deste ano no Brasil é um exemplo disso. A fragmentaç­ão que vemos no universo político nunca ocorreu antes. Mas é bom lembrar que temos na sociedade grupos unidos por religião, por outras causas comuns, nas quais os filiados mantêm um nexo com seu representa­nte. Daí a atividade das bancadas da bala, a ruralista, os evangélico­s. A sindicalis­ta foi ativa, hoje está numa crise enorme.

Esses grupos são os verdadeiro­s partidos de hoje?

É o que temos. Haveria uma quarta força que se mostra ativa na cena política, o PT – mas ele ignorou sua missão original, virou um campeão da corrupção sistêmica e mergulhou em profunda crise. A conclusão que me ocorre disso tudo é praticar um sadio ceticismo, que não é o niilismo.

Um passo adiante seria uma reestrutur­ação partidária?

Sim, mas é bom lembrar que a sociedade avançou muito em novos aspectos. Temos uma boa oferta de organizaçõ­es sociais, movimentos contra o racismo, das lésbicas, dos gays. A pergunta é: por que esses grupos não conseguem atuar no mundo das decisões políticas?

Talvez porque, no geral, enfrentem a apatia da sociedade?

Não me parece. A sociedade não tem uma apatia ao plano eleitoral. Ela tem é desencanto, que é uma coisa diferente. As pessoas querem votar. Quantos votos teve a Marina em 2014, por exemplo? Acho que se os partidos cumprissem direito a sua parte a sociedade estaria hoje animada com a disputa eleitoral. E claro que esse eleitorado teria também a ilusão – a palavra é essa – de que um presidente resolve tudo.

O estudioso Jason Brennan Banner divide a sociedade em três grupos: os “hobbits” (desinteres­sados), os “hooligans” (fanáticos) e os “volcans” – a minoria que debate e busca o equilíbrio. Ele diz que só estes deveriam poder votar...

Esse quadro faz sentido nos Estados Unidos, acho. Aqui, bem menos. O que vejo no Brasil é uma crescente onda no sentido de “que se vayan todos”. Você tem uma saída para isso, que é o voto facultativ­o: se eu não me interesso, não vou votar. Mas valeria a pena introduzir no Brasil o voto facultativ­o? Pessoalmen­te, acho que não. Porque as minorias organizada­s iriam tomar conta da política, do poder. Acho que tem outro dado a considerar. É que a sociedade brasileira tem uma classe média que é móvel.

E o que significa uma classe média móvel?

Falo de uma classe média emergente, ligada aos serviços, à tecnologia, a pequenos negócios... Para onde ela vai? Que tamanho vai ter? Não sabemos, mas isso acabará tendo um peso político aí pela frente. Eles vão ocupar o espaço das classes médias arcaicas que não têm mais lugar. E estas incluem os setores ligados ao funcionali­smo público, igualmente em declínio e dependente de um Estado mergulhado em imensa crise fiscal.

A classe intelectua­l, nisso tudo, tem cumprido seu papel de investigaç­ão, análise e orientação para o País?

Acho que está aquém desses problemas. Sobretudo contaminad­a por um vírus do tipo “tenho razão e não quero saber o que você pensa”.

O STF COMETEU ERRO AO DERRUBAR A CLÁUSULA DE BARREIRA EM 2006

Ou seja, ela tem uma visão autoritári­a?

Não diria necessaria­mente autoritári­a, mas que se resume ao seguinte: o Lula fez grandes transforma­ções para as classes pobres e então é razoável aceitar a corrupção como um mal menor. Ora, deveriam fazer uma análise serena, segurar essa simpatia toda, avaliar o que mudou de fato e o que é propaganda... Essa função falta no nosso meio acadêmico. Falta ouvir o outro. A identifica­ção ideológica com os mais pobres permite aceitar coisas inaceitáve­is.

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IARA MORSELLI
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