Usinas do ultraje
Nenhuma surpresa. Quando saiu a notícia sobre um documento da CIA que revelava o apoio do ex-presidente Geisel a assassinatos de presos, previ que o candidato defensor da meritocracia no estupro ia dizer algo ultrajante. E a rede social ia explodir em indignação, dando a ele mais uma vitória de propaganda. Bingo.
Ao mesmo tempo, uma erupção por motivo semelhante aconteceu nos Estados Unidos: a escolhida para a direção da CIA foi sabatinada no Senado. Gina Haspel é a primeira agente de carreira a ser indicada para o cargo desde o autor do memorando da CIA sobre Geisel, William Colby. Seu currículo de clandestinidade é manchado pela passagem por um dos infames black sites, prisões secretas autorizadas pelo governo Bush após o 11 de setembro, onde suspeitos de envolvimento com a Al Qaeda foram torturados.
O ex-presidente Obama baniu a tortura. O atual presidente fez campanha elogiando os métodos usados e, para deleite da plateia de seus comícios, disse que ia autorizar métodos mais cruéis do que afogamento. Gina Haspel não cometeu o suicídio de carreira que seria comparar barbárie a tapa no bumbum. Na sabatina, ela se recusou a condenar o próprio passado, mas disse não acreditar que tortura seja eficaz. Pressionada por senadores, Haspel afirmou que não cumpriria uma ordem presidencial de usar os mesmos métodos “sob qualquer circunstância.”
Já o candidato que tem 20% da intenções de voto e melhor usa o chocalho da afronta na rede social gravou um vídeo mostrando uma reportagem antiga em que um ex-guerrilheiro confessava ter executado um companheiro de movimento. A mensagem ao eleitor é clara: escolha entre dois tipos de defensores de assassinato.
Se os indecisos vão decidir esta eleição, o desafio para não morder iscas como “tapa no bumbum” é enorme e não acredito que será vencido num futuro próximo. O crescimento do candidato que defende generais presidentes ordenando assassinatos se dá porque ele segue o exemplo do presidente americano por quem se declarou “apaixonado”. A paixão do ex-capitão não é explicada por se tratar de um herdeiro cujo privilégio o salvou de servir no Vietnã cinco vezes ou porque seu passado inclui personagens associados às máfias italiana e russa. Também não é porque ele insulta militares veteranos de quem discorda, como o senador John McCain, que está morrendo de câncer e sofreu torturas nos cinco anos em que foi prisioneiro de guerra no Vietnã. O que fez o candidato se enamorar do presidente americano há de ser a mistura tóxica de máximo volume na rede social com o desprezo por normas e o culto à própria personalidade.
A usina de ultraje, não é, claro, monopólio de um extremo. A presidente do PT, tuitando em inglês, descreveu Lula como vítima de “crime contra a humanidade,” em desprezo por milhões de vítimas de crimes definidos como tais pela humanidade e sugerindo equivalência entre sua crítica a um processo criminal e genocídio.
Viver online é se expor à ampliação ilusória de debates que não têm a mesma importância no cotidiano dos cidadãos. A usina de ultraje se beneficia quando leva o discurso público para um submundo que pensávamos estar confinado às margens. É 2018 e estamos discutindo tortura e neonazistas. Fechar os olhos para tantos tabus sociais derrubados é uma opção? Como enfrentar a transgressão extremista sem transgredir? Não tenho resposta. Só sei que, no meu ofício, contribuímos para agravar este cenário quando vários jornalistas não esboçam reação ao ouvir um candidato a presidente comparar assassinato a tapa no bumbum numa entrevista que ele transformou, sem resistência, em comício eletrônico. Se não fazemos a pergunta seguinte e outra e mais outra, vamos ceder terreno para tentativas de normalizar a aberração.
É 2018 e estamos discutindo tortura. Fechar os olhos para um tabu derrubado é opção?