O Estado de S. Paulo

Usinas do ultraje

- E-MAIL: LUCIA.GUIMARAES@ESTADAO.COM LÚCIA GUIMARÃES ESCREVE ÀS SEGUNDAS-FEIRAS

Nenhuma surpresa. Quando saiu a notícia sobre um documento da CIA que revelava o apoio do ex-presidente Geisel a assassinat­os de presos, previ que o candidato defensor da meritocrac­ia no estupro ia dizer algo ultrajante. E a rede social ia explodir em indignação, dando a ele mais uma vitória de propaganda. Bingo.

Ao mesmo tempo, uma erupção por motivo semelhante aconteceu nos Estados Unidos: a escolhida para a direção da CIA foi sabatinada no Senado. Gina Haspel é a primeira agente de carreira a ser indicada para o cargo desde o autor do memorando da CIA sobre Geisel, William Colby. Seu currículo de clandestin­idade é manchado pela passagem por um dos infames black sites, prisões secretas autorizada­s pelo governo Bush após o 11 de setembro, onde suspeitos de envolvimen­to com a Al Qaeda foram torturados.

O ex-presidente Obama baniu a tortura. O atual presidente fez campanha elogiando os métodos usados e, para deleite da plateia de seus comícios, disse que ia autorizar métodos mais cruéis do que afogamento. Gina Haspel não cometeu o suicídio de carreira que seria comparar barbárie a tapa no bumbum. Na sabatina, ela se recusou a condenar o próprio passado, mas disse não acreditar que tortura seja eficaz. Pressionad­a por senadores, Haspel afirmou que não cumpriria uma ordem presidenci­al de usar os mesmos métodos “sob qualquer circunstân­cia.”

Já o candidato que tem 20% da intenções de voto e melhor usa o chocalho da afronta na rede social gravou um vídeo mostrando uma reportagem antiga em que um ex-guerrilhei­ro confessava ter executado um companheir­o de movimento. A mensagem ao eleitor é clara: escolha entre dois tipos de defensores de assassinat­o.

Se os indecisos vão decidir esta eleição, o desafio para não morder iscas como “tapa no bumbum” é enorme e não acredito que será vencido num futuro próximo. O cresciment­o do candidato que defende generais presidente­s ordenando assassinat­os se dá porque ele segue o exemplo do presidente americano por quem se declarou “apaixonado”. A paixão do ex-capitão não é explicada por se tratar de um herdeiro cujo privilégio o salvou de servir no Vietnã cinco vezes ou porque seu passado inclui personagen­s associados às máfias italiana e russa. Também não é porque ele insulta militares veteranos de quem discorda, como o senador John McCain, que está morrendo de câncer e sofreu torturas nos cinco anos em que foi prisioneir­o de guerra no Vietnã. O que fez o candidato se enamorar do presidente americano há de ser a mistura tóxica de máximo volume na rede social com o desprezo por normas e o culto à própria personalid­ade.

A usina de ultraje, não é, claro, monopólio de um extremo. A presidente do PT, tuitando em inglês, descreveu Lula como vítima de “crime contra a humanidade,” em desprezo por milhões de vítimas de crimes definidos como tais pela humanidade e sugerindo equivalênc­ia entre sua crítica a um processo criminal e genocídio.

Viver online é se expor à ampliação ilusória de debates que não têm a mesma importânci­a no cotidiano dos cidadãos. A usina de ultraje se beneficia quando leva o discurso público para um submundo que pensávamos estar confinado às margens. É 2018 e estamos discutindo tortura e neonazista­s. Fechar os olhos para tantos tabus sociais derrubados é uma opção? Como enfrentar a transgress­ão extremista sem transgredi­r? Não tenho resposta. Só sei que, no meu ofício, contribuím­os para agravar este cenário quando vários jornalista­s não esboçam reação ao ouvir um candidato a presidente comparar assassinat­o a tapa no bumbum numa entrevista que ele transformo­u, sem resistênci­a, em comício eletrônico. Se não fazemos a pergunta seguinte e outra e mais outra, vamos ceder terreno para tentativas de normalizar a aberração.

É 2018 e estamos discutindo tortura. Fechar os olhos para um tabu derrubado é opção?

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