Modernizar não é facilitar
Mr. Miles e os desafios de fazer o próprio check-in
Mr.Miles recebeu, em mãos, a última edição do Viagem (bit.ly/tudorussia) sobre a Rússia e manda dizer aos editors que achou o trabalho excelente. Também gostou da referência aos álbuns de figurinhas como mote da publicação. Para ele, é prova irrefutável de que, apesar do esforço em contrário, nada irá sepultar o prazer da palavra e da imagem impressas.
A seguir, a pergunta da semana:
Querido Mr. Miles: minha mãe foi viajar com uma amiga pela Europa. Gostou, é claro. Mas teve problemas: na volta, no aeroporto de Munique, encontrou um check-in tão automatizado que ficou perdida. Até mesmo as etiquetas de bagagem deveriam ser providenciadas pelos próprios passageiros. Por fim, com a ajuda de um cavalheiro que bem poderia ter sido o senhor, conseguiu desvencilhar-se da tecnologia e embarcou. Pergunto: a modernidade não deveria fazer alguma concessão aos mais velhos?
Heloisa Mancuso, por e-mail
Well, my dear: como tenho viajado sempre, estou me acostumando step by step às velozes mudanças que ocorrem em todas as partes, notadamente nos aeroportos. O de Munique, cuja melhor qualidade é possuir sua própria cervejaria, é, in fact, pioneiro em quase tudo. Ocorre, na minha modesta opinião, que modernizar não significa, necessariamente, facilitar. Há um frenesi em todo o planeta pelo uso desenfreado da inteligência artificial e de aplicativos que nos deixam boquiabertos.
However, como me disse certa vez o querido Millôr Fernandes (Millôr foi um dos grandes pensadores e humoristas brasileiros do século 20), “um computador, afinal, funciona exatamente igual a um tecnocrata altamente especializado. Não usa a inteligência humana”. Nem a sensibilidade, eu completaria.
Quando leio o conteúdo de sua indagação, concluo que a única sensibilidade em todo o context foi a do cavalheiro mencionado. Aposto que, para acessá-lo, sua mãe não precisou introduzir nenhuma palavrachave, tampouco uma senha que não fosse a aflição estampada em seus olhos.
Como não quero ser taxado de pessimista, acredito, honestly, que, em breve, os computadores entenderão o que significam coisas etéreas como dúvida, medo, ansiedade, pedido e gratidão. Ou, na pior das hipóteses – oh, my God –, seremos nós que passaremos a agir como eles, de forma impessoal e insípida.
Para um viajante em idade provecta como esse vosso missivista, o sumiço da humanidade nas relações de quase todas as espécies soa como uma praga bíblica, daquelas que precisavam ser anunciadas nos tempos em que éramos seres ignaros e só compreendíamos a ira e o temor. Vejo, I’m sorry to say, que é para esse destino que estão indo muitos de nós, ainda que embalados na linguagem fútil e fácil dos pictogramas sorridentes e calorosos, que lhes dá a certeza de que espalham amor e carinho.
‘Na minha modesta opinião, modernizar não significa, necessariamente, facilitar’
Se eu fosse responsável pelo aeroporto da Baviera, manteria aberto, ainda por pelo menos uma geração, um guichê de gente atenciosa para auxiliar aqueles que não alcançaram a graça divina de ser responsivos e compatíveis do jeito que a nova realidade exige. Seria, ao menos, uma gentileza – se bem que essa também é uma palavra em processo de obsolescência.
O pior, darling, é que nem por isso vejo as filas diminuindo nos aeroportos. A tecnologia vem acompanhada da necessidade de maiores controles. Os passageiros emperram ao ter que encaixar seus passaportes em buracos que não compreendem – exceto alguns. Ainda é uma maioria o número de viajantes que têm dificuldades de apontar o código de barras para os leitores. Meu amigo Umberto Eco sempre nomeou, entre os maiores problemas de comunicação, a chamada “presunção não enunciada”, um fenômeno que ocorre quando o criador de um determinado texto ou processo presume que todos sabem do que ele está falando ou o que deve ser feito em determinada situação. Pois é isso, I’m afraid, que está ocorrendo com o mundo. Muita presunção e pouco enunciado. Do you know what I mean? É O HOMEM MAIS VIAJADO DO MUNDO. ELE ESTEVE EM 183 PAÍSES E 16 TERRITÓRIOS ULTRAMARINOS. SIGA-O NO INSTAGRAM @MRMILESOFICIAL