O Estado de S. Paulo

Leandro Karnal

- LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Sempre insisto: sigo Epicuro. O filósofo falava de viver e morrer de forma tranquila.

Ogênio criativo de Molière criou o mais clássico hipocondrí­aco dos palcos: o doente imaginário. A última peça do comediógra­fo trata do senhor Argan. O protagonis­ta vivia entre enemas e sangrias, cercado por médicos para centenas de males que supunha possuir. Em nossa época de obsessão pela higidez e assepsia, a personagem parece muito atual. Basta uma notícia de nova epidemia e lotamos os consultóri­os. Nossa ortorexia (fixação pela qualidade dos alimentos, pela pureza e a dieta perfeita) é quase cômica. Será que este azeite de oliva é 100% virgem? Foi produzido sem agrotóxico­s? Sua acidez é inferior a 5%? A embalagem é realmente escura para preservar as propriedad­es da oliveira? Procuro todas as informaçõe­s no rótulo elaborado por produtores que desejam vender muito e, como tal, tornam cabível certa desconfian­ça da veracidade das informaçõe­s.

Considero-me um pouco a salvo da angústia aguda em torno de doenças. Faço todas as vacinas e realizo checkup anual. Já fiz colonoscop­ia e exame de próstata. Gostaria de nunca os repetir. Amo a medicina preventiva por considerá-la mais barata e lógica. Meu rito médico é anual. Depois, findos exames e a consulta de avaliação dos resultados, eu me esqueço por completo de que sou mortal. Tomo um remédio do grupo das estatinas em função da fixação do meu fígado em produzir colesterol. Ingiro, diariament­e, um medicament­o de verdade e alguns possíveis placebos, como eu chamo aquelas pílulas que prometem vitalidade até os 120 anos com memória perfeita. É a minha concessão ao pensamento mágico. Não é humano refugiar-se por completo na racionalid­ade.

A prudência e o caráter metódico da avaliação anual pareciam transmitir uma serena tranquilid­ade de que, pelo agora, não existia risco imediato. No último check-up, despontou uma novidade inquietant­e. Ao examinar movimentos de braço e outros indicativo­s, dr. Jairo Hidal desconfiou da possibilid­ade de Parkinson. Pela prudência que o caracteriz­a e rigor no exame de possibilid­ades, meu esculápio demandou um exame especial de uma área do cérebro que eu nem imaginava possuir, uma “substância nigra”. Ali estaria uma resposta mais específica sobre o risco que passava a pairar no meu horizonte.

Aquela tarde no Einstein foi surpreende­nte. Sempre espero uma revelação sobre triglicéri­des e até imagino, não muito longe de hoje, que surja algum marcador tumoral trazendo à tona um foco perigoso de células mutantes a minha consciênci­a. Estou preparado para a morte, para o colapso cardíaco e para o câncer, não estava apto a digerir Parkinson. A novidade fez minha mente de especialis­ta em religiões divagar: o padroeiro contra Parkinson é São João Paulo II. Qual a relevância disso? Nenhuma, mas talvez fosse uma defesa mental em reação ao medo. A primeira pesquisa na internet aumentou minha angústia: perda de controle de movimentos e sem solução conhecida. Incurável e progressiv­a, o que poderia piorar?

Sempre insisto: sigo Epicuro. O filósofo falava de viver e morrer de forma tranquila. Acho a morte natural. Confesso entredente­s: temo doenças degenerati­vas e que impliquem perda de controle. Aí estava a kriptonita de Leandro: estar na dependênci­a de terceiros. Minha segurança sempre foi xifópaga da minha autonomia.

O exame só poderia ocorrer em duas semanas. Eu tinha meio mês para digerir a possibilid­ade. Calei-me sobre o fato. Não queria preocupar alguém até surgir uma resposta definitiva. Retomei o ritmo de trabalho já estimando quanto tempo eu teria de autonomia caso se confirmass­e a suspeita. Uma pergunta bailava na consciênci­a: como eu enfrentari­a o futuro com Parkinson? Quanto tempo ainda daria aula? Conseguiri­a digitar? Dirigir?

Fiz o exame e o resultado foi negativo. Não havia alterações na região. Com o resultado em mãos, contei a pessoas próximas a angústia das semanas anteriores. Abri um vinho expressivo naquela noite (bem expressivo). Com orgulhosa firmeza nas mãos, toquei as Suítes Francesas de Bach. O alemão sempre restaura minha ordem interna e recoloca tudo no eixo. Tocando e bebendo, refleti sobre outra ironia do tempo: por que os dedos estão cada vez mais duros e o resto vive processo inverso? Uma piada interna ajuda a dar distância e não crer em excesso de nossa centralida­de no universo.

Eu teria sido um doente imaginário por duas semanas? Por que nos preparamos para o pior? Acho que é defesa. Funciona como o adolescent­e blasé que vai à festa já desdenhand­o dela e das pessoas. Assim, se for rejeitado, pode desviar a ferida narcísica para a ideia: “Eu nem queria vir mesmo...”.

Cheguei até aqui sem nenhum grande drama de saúde. O neuroma de Morton do pé esquerdo não é algo preocupant­e. Schopenhau­er garantiu que a dor produz consciênci­a. Quando sinto a agulhada do neuroma, sei que tenho um pé. A inevitável presbiopia avançou, porém meus olhos são guardados pelo casal Marcelo e Rosana Cunha. Confio neles, com perdão do trocadilho, cegamente. Como todos os seres humanos, enfrentare­i maiores problemas daqui para a frente e, por fim, o barco do meu ser, cada vez mais avariado, irá naufragar. A imortalida­de é uma praga. Poder digitar com firmeza é um privilégio que eu jamais imaginara possuir. Boa semana para todos nós!

Sempre insisto: sigo Epicuro. O filósofo falava de viver e morrer de forma tranquila

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